ENTRE O TEMPO
ALM No.84, January 2026
SHORT STORIES


PLOC! A bolha estourou no rosto de Marta e fez o torpor do sono desvanecer. Ainda tinha os olhos fechados, enquanto ensaiava lentos movimentos circulares com a escova de dentes, num limbo entre a vigília e o reino de Morfeu. A cabeça pendia um pouco para a frente e mantinha a mão esquerda apoiada no lavatório. Era preciso oferecer um certo equilíbrio a um corpo ainda dormente. Sentiu o gosto do creme dental por uns dois minutos, interrompido pela explosão da falsa goma de mascar. Piscou os olhos e instantes furtivos da infância assaltaram-lhe a memória, resquícios prováveis de um sono intranquilo.
Nos últimos meses, desde o seu aniversário, quando completou a idade que mais temia, quarenta e cinco anos – sempre acreditou que toda pessoa tem uma determinada idade que a amedronta, como um marco difícil de atravessar –, sente-se como num quadro de Hopper, solitária, fechada em seu apartamento, imersa numa atmosfera lúgubre, misto de falta de esperança e pena de si mesma. Há dez anos vive numa ponte aérea anual entre o Rio de Janeiro e São Francisco, morando seis meses em cada cidade. O que começou com a ideia de passar uma temporada em casa de amigos nos Estados Unidos tornou-se um hábito do qual não se consegue desvencilhar, e o que antes fazia sentido parece agora ter deixado de o ter.
Marta é a filha do meio de uma família abastada da zona sul carioca. Cresceu num ambiente liberal, de atmosfera “paz e amor”, influenciado pelo movimento hippie e a contracultura que marcaram especialmente os anos setenta no Brasil. Os seus pais divorciaram-se quando contava treze anos, ficando ela a morar com a mãe, junto com as outras duas irmãs. A separação foi consensual e não houve grandes dramas em casa. O pai logo passou a morar com outra mulher, mas depois de alguns anos se separou novamente. A mãe não voltou a viver com mais ninguém, mantendo relacionamentos do tipo cada um no seu canto.
Na adolescência, Marta sempre desfrutou de liberdade e teve a chave de casa desde muito cedo. Os anos oitenta foram vividos com intensidade, entre ondas de rock 'n' roll, tardes na praia e boêmia no Circo Voador pela madrugada afora. Com um quarto em cada casa, costumava ir e vir entre os dois endereços dos pais, muitas vezes dormindo num terceiro quarto qualquer, já de manhãzinha, seguindo à risca o lema de Cazuza: “O mundo inteiro acordar e a gente dormir”.
Nunca deu muita importância aos estudos. Era mais fácil passar despercebida quando as irmãs se sobressaíam na escola, o que amenizava a cobrança em cima de si. Por outro lado, se lhe faltava inclinação para os livros, sobrava-lhe beleza, tendo sido sempre a menina bonita da família. O que lhe veio a calhar, pois nunca precisou fazer esforço algum nesse sentido. Precisasse, jamais o teria feito, porque sempre detestou academias, salões de beleza e roupas que chamassem a atenção. Mesmo assim, acostumou-se a ser notada onde quer que estivesse, a ouvir toda a sorte de galanteios e a ter sempre alguém apaixonado por si, confirmando as previsões que escutava desde cedo: essa menina vai dar trabalho!
Costumava passar finais de semana com os amigos na Região dos Lagos, e foi numa dessas ocasiões que conheceu João Vítor, o seu primeiro namorado a sério, aos dezesseis anos. Com ele, experimentou todos os arrebatamentos do amor, do êxtase à cólera. Assim que completou dezoito anos, foram morar juntos num apartamento alugado de um quarto só em Ipanema. Ainda que os pais lhe dissessem que esse era um passo precipitado, fez as malas e partiu. João Vítor, dois anos mais velho, já trabalhava na época, e um dinheiro extra ainda vinha por conta das mesadas generosas que Marta recebia. Lembra-se de terem comemorado o dia da mudança em grande ocasião: no show do Queen durante o Rock in Rio de 85. A interpretação de Freddie Mercury para Love of My Life oficializou de forma simbólica aquele início de vida a dois e permaneceu nos recônditos de sua memória.
Ficaram juntos por mais três anos, até perceberem que se tinham transformado em dois colegas que dividiam apartamento. Os interesses tinham tomado direções opostas, e o mesmo se deu com os caminhos. Marta passou a morar sozinha, levando os dias sem muitos horários a cumprir. Obrigações, muito menos. As atividades que realizava eram por opção e não por qualquer forma de imposição social ou familiar. Decidiu não fazer faculdade, preferia estar livre e desfrutar a vida, ao invés de passar quatro ou cinco valiosos anos presa dentro de uma universidade. Gostava, porém, de aprender idiomas estrangeiros e se dedicava a cursos de diversas técnicas de trabalhos manuais, do patchwork às bijuterias de latão.
Nunca teve preocupações financeiras. Logo que completou vinte e um anos, passou a receber os aluguéis de dois belos imóveis de sua propriedade, herança dos avós, localizados no Leblon, o que lhe garantia um rendimento substancial todos os meses. O berço de ouro fez, então, com que pudesse passar pela vida sem a necessidade de ter de trabalhar para se sustentar. E acredita que isso talvez tenha contribuído para a sua falta de ambição econômica, pois nunca desejou muito mais do que aquilo que já possuía – aumentar o patrimônio não fazia parte de suas intenções.
Herdou da mãe o gosto pelas artes. Tinha prazer em passar tardes ociosas nos museus e galerias da cidade. Em meados dos anos 90, numa exposição de pintura latino-americana, conheceu Javier, um artista plástico chileno radicado no Rio. Apaixonaram-se logo no primeiro encontro e depois de duas semanas já tinham a chave da mesma casa. Compartilharam noites sem fim a discutir sobre a expressividade da arte conceitual contemporânea, entre goles de Pisco Sour e músicas em língua espanhola, que Javier arriscava dedilhar no violão. Marta sentia-se fascinada pela sensibilidade daquele artista e Javier se encantava com aquela mulher que não gostava de planejar a vida, para quem, nessas ocasiões, sempre cantava: “Qué será de mi vida, qué será, si sé mucho o no sé nada, ya mañana se verá”.
Viveram juntos por quase uma década até o início do novo milênio. Os problemas surgiram quando Javier, com dez anos a mais que Marta, insistiu para que tivessem filhos, e, a partir daí, a sua relutância em fazer planos deixou de ter graça para ele. Marta lembrava-se que, em criança, divertia-se a escolher nomes para filhas imaginárias: Marion, Julie, Adèle. A inclinação para os prenomes franceses talvez fosse uma manifestação do seu subconsciente, de tanto que ouvia os pais falarem nos personagens dos filmes de Truffaut. No entanto, à medida que cresceu e se tornou adulta, o desejo da maternidade não aflorou. Pelo contrário, ela associava a ideia de se tornar mãe, com toda a conotação de laços eternos envolvida, a uma espécie de perda de liberdade, a qual prezava tanto. A ideia de nunca mais – ou ao menos por uns bons anos – dar um passo sequer sem cogitar como isso iria interferir na vida de uma outra pessoa era-lhe demasiado assustadora. Não pôde tomar essa decisão e o relacionamento entre eles chegou ao fim.
Por volta de 2002, começaram as suas idas e vindas à costa oeste estadunidense. Marta adorava o ambiente de descontração de São Francisco e a cena artística da cidade. No início, ficava hospedada na casa de amigos, mas com a frequência das viagens, passou a alugar um apartamento por temporada. Apesar de viajar com visto de turista, fazia alguns trabalhos temporários quando lá estava, mais para ocupar a mente do que propriamente pelo dinheiro, que nunca lhe faltou. Também aproveitava essas oportunidades como uma forma de socialização e convívio com os locais ou com os demais estrangeiros, numa estratégia de imersão cultural. Fez muitos amigos durante esses anos todos e teve alguns romances passageiros.
Sempre se sentiu em casa naquela cidade sem preconceitos onde respirava liberdade. Mas agora, por causa do dito aniversário, os anos começavam a pesar-lhe. Alguns dias arrastava-os num estado de cansaço nascido ainda antes de abrir os olhos pela manhã, numa espécie de estado depressivo que tornava difíceis e penosas as tarefas mais simples, como levantar-se da cama ou ir à rua. Em suas reflexões, dá-se conta de que enquanto o tempo não chega para nós, tudo é abstrato. Podemos ponderar, conjecturar sobre o envelhecimento, mas não se alcança o seu sentido. Até que comece a acontecer conosco.
Os primeiros sinais iniciaram-se de forma sutil, ainda pela casa dos trinta. Marta passou a notar as rugas de expressão em volta dos olhos quando sorria, como se nunca lá tivessem estado e resolvessem aparecer de um dia para o outro. Cansava-se mais rapidamente executando tarefas e exercícios que antes realizava com facilidade. Os intestinos, que por toda a vida desempenharam as suas funções com disciplina alemã, transformaram-se em órgãos temperamentais. E a madrugada já não era o momento em que tudo podia acontecer, pois o sono teimava em chegar mais cedo.
Doeu quando começaram a tratá-la por “senhora”, e a cada vez que escutava o termo, era como se sofresse uma tortura chinesa – o que, para Marta, evidenciava a sensação de descompasso entre a percepção que temos de nós próprios e os dados objetivos da nossa carteira de identidade ou das marcas de idade que trazemos escritas no corpo. Afinal, ainda se via como se fosse a mesma dos anos da jeunesse dorée. E até se vestia de forma jovial, preferindo o terceto calça jeans, camiseta e tênis. Mantinha, porém, em seu estilo, alguns traços dos anos oitenta e noventa, o que a levava a acreditar que as pessoas geralmente conservavam características da década em que foram mais felizes, como se pudessem, dessa forma, congelar o tempo. Aumentou a frequência com que passava tinta no cabelo, já não apenas para manter a cor, mas porque os fios brancos teimavam em aparecer. Cogitou deixar de tirar com cera os pêlos da região acima dos lábios com receio de que lhe tornasse a pele flácida.
Nunca foi de usar cremes para nada e sentiu vergonha na primeira vez em que percorreu as prateleiras do supermercado à procura de algum produto anti-envelhecimento para o rosto, torcendo para que ninguém a visse, como se estivesse em busca de gel lubrificante para uma tórrida noite de sexo. Ficou atordoada com a imensidão de opções para os mais tenebrosos propósitos: anti-rugas, antiidade, preenchimento, colágeno, lifting, matificante, cremes para o dia, cremes para a noite, a maioria dos quais nunca ouvira falar.
Ainda lembrava da vez em que uma amiga ficara hospedada em sua casa e, tendo esquecido de trazer o creme hidratante, pediu-lhe o seu emprestado. Quando disse a ela que não utilizava nada dessas coisas, a sua expressão de incredulidade fez com que Marta se sentisse uma extraterrestre. Algo semelhante se passou durante um serviço de vendas a bordo de uma companhia low-cost. Uma passageira que vinha ao seu lado perguntou à aeromoça para qual idade eram destinados os produtos para pele disponíveis no catálogo. A aeromoça não soube informar, mas perguntou quantos anos tinha a garota, que logo disse ter vinte e cinco. De seguida, a comissária arrematou dizendo que esta era a idade certa para começar a usá-los, pois se esperasse pelos quarenta, já não teria resultados. Marta ouviu tudo sem dizer palavra e ficou-lhe um gosto amargo na boca. Já passava dos quarenta. No que dependesse da aeromoça, a sentença de morte da sua pele estava lançada.
A menina bonita que tinha, de fato, dado trabalho acreditava que a sua beleza se iria conservar com a dança dos anos, como se estivesse imersa em formol. Sentiu o golpe do avançar do tempo a apunhalá-la quando percebeu que não chamava mais a atenção nas ruas como antes. Recorda-se de como os olhares e cantadas que outrora recebia chegavam a incomodá-la, tendo muitas vezes desejado ser invisível, para passar despercebida naqueles dias em que se quer sumir por um motivo qualquer – atitude que, neste momento, acha um luxo. Hoje se apanha a desejar que a olhem com aquela mesma admiração de antigamente. Tinha a impressão de que, quando chegava a algum lugar, os olhos já não a fitavam, e sim uma eventual amiga que estivesse ao lado, bastando, para isso, que fosse mais nova. Nos dias atuais, ao ver as fotos de antigas colegas do seu tempo de escola em alguma rede social, nota que passou a achar belas aquelas em que, naquela época, não via graça nenhuma, assim como via beleza em qualquer adolescente de agora, simplesmente pelo fato de, num e noutro caso, terem a juventude. Marta estava convencida e concluía, baseada na sua própria experiência, que o envelhecer é ainda mais difícil para as mulheres que um dia foram muito bonitas, justamente por se terem acostumado a uma posição privilegiada e estarem fadadas à dupla perda da juventude e da beleza.
Há dias em que não sai de casa. Nem sequer para ir às compras. Apenas para colocar o lixo para fora, torcendo para não cruzar com nenhum vizinho. Vai cozinhando com o que ainda encontra e se convence de que não ter nada em casa até que estimula a criatividade na hora de improvisar o que comer. A louça acumula-se e as colheres começam a grudar nas xícaras de café espalhadas pela pia da cozinha. Tem evitado receber ligações. Não quer ver os amigos e ter de colocar uma máscara de feliz. Tampouco quer vê-los e não precisar de colocar máscara nenhuma. Não quer ter de se divertir, como se tivesse virado obrigação. A vida de estilo “Amusing Ourselves to Death” parece-lhe agora vazia.
O telefone toca. Marta reconhece no identificador de chamadas o número de Sarah, sua professora de pintura, uma mulher por quem tem grande admiração. Atende sem pensar muito. Sarah sente a sua falta por ela não mais ter ido às aulas e convida Marta para um café. Ela aceita. Não sabe bem por que razão, mas sente que encontrar com Sarah lhe fará bem. Por vezes, é mais fácil dizer a pessoas com quem não se tem muita intimidade o que nos aflige, por mais paradoxal que possa parecer. Marta relacionava-se com Sarah apenas no ambiente das aulas. Era uma mulher cheia de vida, de sessenta e poucos anos, atraente e culta, que tinha um pequeno ateliê de artes no primeiro andar de sua casa, uma charmosa vivenda de arquitetura vitoriana, nos arredores da Alamo Square. Marta havia começado as lições há somente dois anos, apesar de a vontade de se aventurar pela pintura a óleo ser antiga, desde o período em que esteve com Javier. No entanto, naqueles tempos, sentia-se intimidada pelo seu talento e aquele desejo foi ficando para depois.
A conversa com Sarah foi frontal. Marta sentiu-se à vontade para lhe falar do que se passava consigo. Questionou as escolhas que fez, a faculdade que não cursou, a carreira que não construiu, os filhos que não teve. Toda uma vida acomodada numa eterna zona de conforto. Sem se doar a nada ou a ninguém a cem por cento, vivendo apenas para si. Agora, no seu íntimo, colocava tudo em perspectiva, assombrada pelo reconhecer dos anos que passavam, com aquela amarga sensação de tempo perdido. Lembrou-se de um dos hinos de sua juventude e percebeu que as palavras de Renato Russo, que um dia cantou como se fossem suas, não mais serviam para si: já não tinha todo o tempo do mundo. “Somos tão jovens” parecia, de repente, anacrônico.
– Marta, você viveu o momento. E no momento não se questiona. Só com os anos, o distanciamento, a experiência e a sabedoria, é que se vai entender. No momento não se entende, vive-se. Não se culpe por isso. Poderia ter acontecido o oposto, você ter seguido todos os caminhos tradicionais e, ainda assim, hoje se encontrar na mesma crise, justamente por ter deixado de viver fora do que normalmente é esperado de nós.
– Estou presa nesses pensamentos, procurando um sentido para tudo isso – Marta desabafa, suspirando de cansaço.
– O passado é a nossa história de vida, a nossa mochila nas costas, a nossa bagagem. Mas não vivemos mais nele, temos de viver no presente. A depressão é a não-aceitação da realidade, Marta. Se você não está satisfeita com a sua vida de agora, a mudança tem de vir de você. Não vale a pena ficar parada, arrependendo-se e tendo autocomiseração.
– Pergunto-me se não terei desistido de tudo…
– As pessoas têm tempo e ritmos diferentes, minha querida. O importante na vida é ter projetos. E isso não quer dizer terminá-los, mas ter um objetivo que nos mova, ir fazendo. Se ainda estamos vivos, podemos sempre nos dedicar a algo novo – diz Sarah.
Marta não podia deixar de admirar ainda mais a mulher tão interessante que era Sarah. Perguntou-lhe, um tanto sem graça, sem querer ser indelicada:
– Foi difícil começar a envelhecer?
Sarah sorriu e respondeu de forma cúmplice:
– É bem mais fácil quando reconhecemos o nosso próprio valor e estamos seguras disso. Não tenha complexos de idade, o principal é se sentir bem no seu corpo e na sua vida.
Sarah só poderia estar certa. Do alto de sua idade, era uma mulher extremamente interessante aos olhos de Marta e dos que a conheciam.
Naquela noite, Marta chegou em casa e pôs para tocar no computador um arquivo de músicas alpinas. Gostava desse tipo de canção das montanhas, que lhe trazia serenidade e causava arrepios. Resolveu lavar a tonelada de louça acumulada. O toque da água em suas mãos sempre lhe trouxe inspiração, como se abrisse na mente um canal qualquer. Enquanto seguia com a tarefa, relembrou a conversa com Sarah. De fato, não havia sentido em tantas inseguranças por causa da idade que avançava. Não podia deixar que a sua feminilidade ou o modo como se sentia consigo mesma fossem definidos pelo olhar masculino. Era preciso dar a devida proporção a isso. Não se podia permitir ser escrava da ditadura da juventude ou da beleza, tão arraigadas na sociedade atual. Além do mais, nunca tinha jogado no time do culto ao corpo, mesmo tendo nascido num país em que as características sensuais são sobrevalorizadas. Não seria agora que iria começar. Havia que se ocupar de questões mais profundas.
Nos dias que se seguiram, Marta continuou a refletir sobre as questões que a vinham atormentando, mas, dessa vez, com uma atitude diferente. Quando lhe vinham os pensamentos negativos, esforçava-se para afastá-los. Procurava descobrir dentro de si o que poderia fazer para sair do panorama cinzento em que se encontrava. A vida era feita de muitas histórias, havia que inventar outra. Lembrou-se de sua mãe e da última vez em que se despediram, antes de embarcar novamente para os Estados Unidos. Depois de tanto pensar a questão do envelhecimento, veio-lhe à mente que as lágrimas de sua mãe não deveriam ser apenas uma espécie de saudade antecipada, como ela acreditava. Mas sim, e sobretudo, o medo da sua própria morte, o receio de não voltar a ver a filha. Marta sentiu-se insensível ao pensar que nunca compreendeu de verdade aquele sofrimento à porta de embarque, o que pensava ser tanto drama por causa de uma simples viagem de seis meses. E sentiu saudades da mãe, da família e do Rio.
Decidiu pôr fim ao contrato de locação do apartamento de São Francisco. Agora fechava esse ciclo em sua vida. Estava na hora de voltar para o Brasil. Sentiu vontade de, finalmente, tornar a estudar e começar a faculdade que nunca pensou em fazer. Sarah estava certa, cada pessoa tem o seu tempo de maturação. Não tinha dúvidas quanto ao curso ideal para si: Educação Artística, na Faculdade de Belas Artes. Esse seria o primeiro passo a dar. Os outros ainda estariam por vir. Já não sentia medo.
Aproximou-se da janela da sala de estar, para olhar a vista pela última vez. Pousou a sua mala no chão, abriu as persianas e se posicionou num ângulo diferente do em que costumava ficar. Deixou-se estar por alguns minutos. Reparou, então, num detalhe da paisagem que, em todo esse tempo, nunca tinha notado, o que a surpreendeu. Achou graça e pensou que, às vezes, basta que olhemos de lado para mudarmos totalmente a perspectiva daquilo que vemos. E, naquele momento, resolveu fazer as pazes com o Legião Urbana. Afinal, não tinha mais o tempo que passou, mas tinha muito tempo. A campainha do interfone toca e retira Marta de suas divagações. O táxi para o aeroporto está à espera.
Bianca Faciola was born in Brazil, holds both Brazilian and Portuguese citizenship, and has lived in Portugal for many years, dividing her time between the two countries. She has a degree in Journalism from the University of Coimbra and is completing a Master’s in Clinical Psychology at the University of Évora. Her writing often explores memory, displacement, intimate relationships, and moments of change that reconfigure our inner lives. She likes to write what she most enjoys reading: narratives rich in cultural references, where cities often function almost as characters, closely following people’s emotional movements.

