O DESFILADEIRO DE AMO
A história do último unicórnio
( Fim de semana em Faro / Capítulo Dezanove / Stevan V. Nikolic)

Traduzido do Inglês por
Adelaide Franco Nikolic


O unicórnio é um animal lendário, que tem sido descrito desde a antiguidade como um animal semelhante a um cavalo, com um corno grande, afiado e em espiral a sair-lhe da testa. Era geralmente descrito como uma criatura muito selvagem, que vivia na floresta, símbolo de pureza, graça e independência, que só podia ser capturado por uma virgem. Nos tempos antigos, acreditava-se que o seu chifre tinha o poder de transformar água envenenada em água potável e de curar maleitas. De acordo com a lenda, havia muitos unicórnios na terra há alguns séculos, mas, lentamente, com o avanço e a pressão da civilização humana, acabaram por desaparecer.

Nas montanhas do Sul de Portugal, algures na região do Alentejo, há uma ravina que se chama “Desfiladeiro de Amo”. Há algum tempo estive lá e ouvi os habitantes locais contarem a história do último unicórnio chamado Amo. De acordo com a história, havia dois unicórnios: o macho Amo e a fêmea Ama, mas ninguém sabia dizer o que tinha acontecido a Ama. Alguns acreditavam que ela ainda estava algures, a correr pelas florestas e pelos prados. Pelo menos, era o que dizia a lenda.

É assim que a história se passa. Há cerca de trezentos anos, já só havia dois unicórnios no mundo. Um macho chamado Amo e uma fêmea chamada Ama. Eles não se conheciam um ao outro, porque viviam em terras diferentes, mas sentiam a existência um do outro. Com regularidade, sonhavam um com o outro e sentiam uma estranha saudade, como se pertencessem um ao outro, mas a vida continuava e eles viviam as suas vidas separadamente, nunca esperando que se encontrassem algum dia.

Ama era uma jovem unicórnio, feliz com o seu ser, orgulhosa da sua independência e liberdade. Olhava muitas vezes para os outros animais, questionando-se por que é que deixavam os humanos domá-los e usá-los. Não conseguia compreendê-los. Ela apreciava cada pedacinho de natureza que a rodeava. Adorava as flores selvagens, os ribeiros de águas geladas, as florestas profundas e misteriosas, os sons do vento nas árvores e a música dos pássaros. Só se sentia completa quando sentia a terra, correndo sobre montanhas e vales. Sentia, então, a plenitude da criação. Sabia que era uma das criaturas vivas mais majestosas e estava orgulhosa desse facto.

Ocasionalmente, os humanos viam-na correr pelas terras e admiravam a sua beleza e a sua graça. Naturalmente, queriam apanhá-la e domesticá-la, mas ela nunca o permitiria. Gostava de sentir a sua admiração e de brincar com eles. Apreciava mesmo a atenção que lhe devotavam. Por vezes, Ama deixava os humanos aproximar-se e tocar-lhe, manipulando os seus sentidos, para que sentissem que ela era real e não um sonho. Em seguida, fugia, deixando-os a pensar o que teria acontecido e, muitas vezes, tristes por terem perdido a oportunidade de apanhar um animal tão precioso.

Não tinha a certeza sobre aquilo que sentia pelas pessoas, mas sabia que não estava disposta a abdicar da sua liberdade e da plenitude e felicidade que sentia quando corria sem rumo pela natureza. Era assim que ela era e ela não queria ter de mudar, por nada no mundo.

Por outro lado, numa parte completamente oposta do mundo, vivia Amo. Assim como Ama, sendo um unicórnio, apreciava as mesmas coisas e estava orgulhoso da sua independência e liberdade.

Era bastante mais velho do que Ama, mas ainda era um unicórnio macho bastante forte. No entanto, sendo macho, sempre tinha tido a necessidade de mostrar a sua força e superioridade em relação aos outros animais. Ele sempre tinha precisado de reconhecimento. Especialmente da parte dos humanos.

Ocasionalmente, deixava-os apanhá-lo e fazia-os acreditar que o tinham domado. Durante algum tempo, trabalhava nos seus campos, puxava as suas carruagens, corria nas corridas de cavalos e fazia tudo aquilo que esperavam dele, apenas para mostrar a sua superioridade e força e para apreciar a admiração dos humanos. No entanto, acabava sempre por se aborrecer e fugir, deixando o caos atrás dele. Mandava celeiros abaixo, partia cercas, pisava as colheitas em que estava a trabalhar, arranca as vinhas, tudo para mostrar aos humanos que não podia ser usado e querendo que pagassem pela crença de que podiam domá-lo. Em seguida, corria livremente pelos campos até à vez seguinte em que se deixava apanhar pelos humanos.

Com o tempo, foram-se espalhando rumores sobre Amo entre os humanos e havia muitos que, zangados, queriam apanhá-lo e puni-lo pelo rasto de destruição que deixava sempre atrás dele. Alguns diziam até que ele não era um verdadeiro unicórnio, mas um cavalo selvagem que merecia ser abatido. Para eles, os unicórnios eram criaturas graciosas, que nunca agiriam daquela maneira. Amo, no entanto, não queria saber da opinião deles. Sabia quem era e continuava a viver a vida da mesma maneira.

Depois de muitos anos, cansou-se de jogar o mesmo jogo e decidiu estabelecer-se num local onde ninguém o conhecesse, numa parte diferente do mundo, de modo a evitar os humanos para sempre. Veio para as montanhas do Alentejo, sem saber que se tinha mudado para a terra que era habituada por Ama.

Uma manhã, estava no alto de uma cumeeira, a apreciar o calor do sol matinal, quando, repentinamente, à distância, viu Ama a correr nos campos. Não podia acreditar nos seus olhos. Ela era a criatura mais bela que ele já tinha visto. Era aquela com quem ele tinha sonhado. O seu coração começou a bater com força. Ela também o viu. Ama estava igualmente excitada, mas cautelosa. Por um lado, estava contente por ver outro unicórnio. Era um pouco mais velho, mas parecia ser forte e bonito. Perguntava-se a si própria se seria possível que ele fosse aquele cuja existência ela tinha pressentido toda a vida. Não tinha a certeza se devia aproximar-se dele, pois tinha sempre receio de se desiludir.

Amo correu na direção dela. Corria velozmente, tentando impressioná-la e mostrando a sua força. Durante algum tempo, correram lado a lado, mas ao mesmo tempo iam-se examinando. A cada quilómetro, Amo aproximava-se um pouco mais. Ama continuava receosa, mas deixava-o encurtar a distância entre eles. Quando a noite chegou, encontravam-se ambos no mesmo pasto. Enquanto bebiam do mesmo ribeiro, observavam-se um ao outro com cautela.

Finalmente, Amo chegou-se a Ama. Ela estava imóvel, olhando para ele. Podiam ouvir o bater do coração um do outro. Ele tocou-lhe e deitaram-se ao lado um do outro, com os corpos a tocarem-se. Foi uma sensação gloriosa para ambos, uma sensação de realização. Uma sensação de sonhos que se tornavam realidade.

De manhã, acordaram e continuaram a correr e a andar pelos bosques, apreciando o que os rodeava, mas, acima de tudo, apreciando-se um ao outro. Ama estava verdadeiramente feliz. Finalmente, havia um unicórnio verdadeiro a seu lado, alguém que pudesse entendê-la e que não ia tentar domá-la, alguém com quem partilhar a alegria da liberdade e da criação sem limites e sem condições, alguém da mesma espécie. Ela não queria acreditar que finalmente acontecera, mas estava mesmo ali, à frente dos seus olhos. Tinha algumas dúvidas, pois tinha passado toda a vida sozinha, sendo ela o único unicórnio, mas ele estava mesmo ali, forte e real.

Amo também estava feliz. Prometeu que nunca sairia do seu lado. Pensava que estaria sempre lá para quando ela precisasse, mas Ama não queria que ele estivesse ali para ela, mas sim com ela. Nunca tinha sentido que precisasse de alguma proteção ou ajuda. Era forte o suficiente e inteligente o suficiente para tomar conta de si própria. Por tudo isto, queria estar com Amo como dois seres iguais e independentes, capazes de respeitar e apreciar a liberdade do outro. Queria partilhar com ele a grandeza do seu amor puro, assim como as experiências da natureza. Queria enriquecer-se com a presença de uma alma tão parecida com a sua e não ser restringida ou retardada por ela. Queria partilhar o afeto pelas coisas que ambos estimavam.

Bom, Amo sabia o que Ama queria e queria a mesma coisa, mas o tempo que ele tinha passado junto dos humanos tinha mudado um pouco a sua natureza. Por um lado, queria fugir com Ama até ao fim dos tempos e desfrutar da sua união na liberdade dos campos, florestas e montanhas. Por outro lado, também queria ter um sítio a que ambos pudessem chamar casa. Algures onde pudessem instalar-se e sentir o calor da sua união.

A casa que ele tinha em mente inseria-se na categoria humana. Para os unicórnios, casa era o universo no seu todo, o espaço sem fronteiras. Era a isso que Ama chamava casa. De qualquer modo, Amo era persistente. Levou-a à cumeeira que tinha descoberto. Queria construir-lhe um jardim, cheio de plantas e frutas diferentes. Ela olhou para ele, pensando que ele estava a brincar um qualquer jogo infantil. Por que haveria um unicórnio de querer um pequeno jardim no qual teria de trabalhar, quando o mundo inteiro era um jardim enorme pronto a ser explorado? Ainda assim, durante algum tempo, ela divertiu-se a planear e, até, a ajudá-lo a construir o jardim.

Sim, pensava ela, talvez, ocasionalmente, pudessem parar ali para descansar, mas assentar num único sítio era impossível – algo que ela pensava que nunca iria apreciar. Amo não percebeu que ela queria um unicórnio igualmente livre e independente, alguém que ela pudesse admirar pela sua liberdade. Ela queria dar-lhe o seu amor, mas não queria ter de sacrificar a sua liberdade. Era algo que não estava na natureza dos unicórnios. Ela seria infeliz para sempre, mas também não queria que ele sacrificasse nada pelo amor e pela união deles.

Amo pensava de maneira diferente. Pensava que se se estabelecesse num local e aí construísse uma casa, ela quereria juntar-se a ele. Demasiados anos entre os humanos tinham-lhe turvado o pensamento. Agora pensava como eles. Por isso, sacrificou a sua liberdade e estabeleceu-se na cumeeira. Queria mostrar a Ama que sacrificaria tudo pelo amor dela, até a liberdade de unicórnio, e que esperaria por ela pacientemente.

Ama aparecia ocasionalmente para passar algum tempo com Amo. Ela amava-o verdadeiramente e tinha esperança que ele percebesse a sua verdadeira natureza e que voltasse a correr livremente com ela como os unicórnios faziam, esquecendo-se definitivamente dessas ideias de casa.

No entanto, Amo era persistente e continuava na cumeeira. Ela estava cada vez menos excitada por ir ter com ele. Era só uma cumeeira, mais uma entre as muitas montanhas alentejanas. Ela começava a perder a paciência com Amo. Não percebia como é que um verdadeiro unicórnio podia comportar-se como um humano. Um verdadeiro unicórnio nunca sacrificaria a sua liberdade, nem mesmo por amor, pois a liberdade é parte do amor verdadeiro. Para os unicórnios, o amor era uma categoria incondicional. Na verdade, ela via o seu sacrifício como uma fraqueza, algo que a fazia perder o respeito por ele e não ganhar-lhe mais afeto. Tinha ouvido algumas das histórias que os humanos andavam a espalhar sobre Amo e, por vezes, perguntava-se a si própria, Que tipo de unicórnio alguma vez agiria deste modo? Talvez ele seja mesmo um cavalo selvagem a fingir que é um unicórnio. Seria possível que ela se tivesse enganado a respeito dele? Um dia, ela já não suportava mais olhar para ele dessa maneira. Ele simplesmente não parecia o unicórnio dos seus sonhos. Quase sentiu pena dele. Aquele não era o Amo que ela tinha conhecido – o unicórnio rápido e forte a correr a seu lado. Ela disse-lhe que nunca mais voltaria à cumeeira, que tinha tudo sido um erro e partiu. Estava desapontada e magoada, mas sabia que se sentiria melhor uma vez que voltasse a correr pelos campos abertos e através das florestas densas. Era o ar livre das montanhas altas que a faziam sentir-se livre. Para ela, era melhor que Amo permanecesse onde sempre tinha estado, nos seus sonhos.
Amo ficou na cumeeira, a sentir pena de si próprio e do amor perdido de Ama. Não acreditava que ela o tinha mesmo deixado. Negligenciou o seu jardim e em pouco tempo não tinha comida para comer. Durante dias não comeu, não queria comer, não queria viver. Já não se preocupava com mais nada. Só pensava no quanto precisava de Ama. Finalmente, percebeu que tinha cometido um grande erro. Tudo o que ela queria dele era que fosse aquilo que era, um verdadeiro unicórnio. Estava zangado consigo próprio por ter agido como um humano. Como podia ter sido tão estúpido?

Enquanto ele passava dias deitado na cumeeira, os humanos do vale, que andavam à sua procura para o castigar, deram pela sua presença. Começaram a subir a colina, cada vez mais ansiosos por fazê-lo pagar pelas suas más ações. Ele viu-os a aproximarem-se. Não tinha a certeza se devia fugir ou ficar e enfrentar o seu destino, até algo dentro dele lhe dizer para saltar e correr, para tentar ser um verdadeiro unicórnio. Talvez um dia, não interessava quando, voltasse a encontrar Ama e, então, poderia mostrar-lhe que ele era o tal: um verdadeiro unicórnio, o unicórnio dos seus sonhos.

Levantou-se devagar. Não podia descer a colina, porque seria encurralado pelos humanos. A sua única hipótese era saltar daquela cumeeira para outra cumeeira, por cima da ravina funda. Calculou a distância. Costumava fazer saltos muito maiores no passado. Ia conseguir, pensou ele, e saltou. Os seus músculos estavam fracos e o seu corpo já não era aquilo que costumava ser. Além disso, os dias passados deitado, sem água nem comida, tinham cobrado o seu preço. Ele não conseguiu alcançar a outra cumeeira, caiu no fundo da ravina e acabou por morrer aí.

Quando os humanos chegaram à beira da ravina, viram o seu corpo inerte e ensanguentado no fundo. Um deles disse, ”Bom, estavam certos. No fim de contas, ele não era um unicórnio, apenas um cavalo selvagem que teve o destino merecido. Um verdadeiro unicórnio teria conseguido saltar esta distância.”

Anos mais tarde, no sítio onde ele tinha caído, surgiu uma nascente na rocha com uma abundância de água extremamente pura e fresca. Os habitantes locais falavam das propriedades mágicas da água, que curava muitas doenças. Alguns habitantes lembravam-se que o unicórnio tinha caído e morrido naquele local e ligando as duas coisas, deram à nascente o nome de “Nascente de Amo” e ao desfiladeiro o nome de “Desfiladeiro de Amo”. Alguns dizem que era assim que ele quereria, que sempre tinha almejado pelo reconhecimento humano. Agora, tinha-o finalmente, para sempre.

Ocasionalmente, as pessoas juravam que viam Ama a descer o desfiladeiro para ir beber água à nascente de Amo. Mas eram apenas histórias. As pessoas gostavam de contos de fadas.