Era uma vez, num pequeno vale escondido no Monte Ararat, uma diminuta raça de gigantes que ali existia desde o princípio dos tempos. As altas falésias que rodeavam aquele vale fechado tinham impedido que o resto da humanidade ali se aventurasse.
Um desses gigantes era o bom pastor Osías, pai de Lilit, linda moça montanhesa de vários metros de altura. A jovem, que até era baixa para o seu povo, vivia só com o seu viúvo pai, senhor de um rebanho de centos de ovelhas.
O velho Osías sempre avisara sua filha para que nunca tivesse curiosidade pelo mundo, pois aqueles que se tinham atrevido a galgar aqueles penhascos íngremes, nunca tinham regressado, sabia-o o velho Mithi, que tinha o conhecimento dos antigos. Talvez que no princípio do mundo todos os homens fossem assim, e tivessem povoado aquele vale.
O vale era muito fértil e não era tão frio como ao princípio a grande altitude poderia fazer supor. Pontilhado aqui e ali de salgueiros e bétulas, era quase todo ele constituído por moreia, a qual dava pasto aos vastos rebanhos de ovelhas do povo de Lilit e albergava alguns coelhos, bem como perdizes e tetrazes. Não havia o costume de trabalhar a terra, e os gigantes viviam da carne e leite das ovelhas, de alguma caça e das bagas e morangos selvagens que colhiam.
Ora, mal o pai morreu, a jovem e linda Lilit começou a ser atormentada por desejos de deixar para trás o mundo limitado em que vivia, e saber o que existia para além das montanhas que cercavam o seu vale. Sem dizer nada a ninguém, carregou com bagas e linguiças um saco de pele de ovelha que colocou às costas e, numa noite de luar, começou a escalar de forma lenta, mas persistente um dos lados do vale, um que lhe pareceu mais baixo. Demorou horas a alcançar o topo, e depois começou a descer, percorrendo com a vista, pela primeira vez, um novo mundo.
Com medo do que pudesse encontrar, a jovem dormia de noite nas clareiras das florestas, que por vezes mal a ocultavam, e de noite corria, corria sem destino, fazendo tremer a terra por onde passava.
Andou assim até perder a noção do tempo. Sabia que estava cada vez mais quente e sentia o sol aquecê-la de uma forma agradável e terna. Muitas vezes passava fome, e via que os animais daquelas terras para pouco mais davam do que para uma refeição. Sentia-se cansada, e para aquela noite acoitou-se numa larga clareira, que havia num bosque. Contudo, nem o nascer do Sol a acordou, e quis o destino que dois caçadores, que andavam em busca de javalis a avistassem! Ficaram espantados com o tamanho daquela beldade, mas logo um deles, Archelocus, disse ao seu companheiro Diocles:
-Se capturassemos esta gigante, como seríamos bem recebidos na cidade!
-Ah, sim?-gozou o outro.-E como pensas capturar esta colossal criatura?
-Tu verás! Vamos rápido a minha casa, matar aquele carneiro que estava a guardar para a festa.
Os dois jovens homens afastaram-se num ápice, e em breve se atarefavam ali perto a derrubar o muro de um velho poço seco, que cobriram depois com ramagens de cedro e de oliveira. Junto ao poço, foi colocado o malogrado carneiro a assar no espeto. Quando Lilit finalmente despertou, logo sentiu com as suas grandes narinas o aroma do carneiro que assava, e sem cuidar de tomar grandes precauções, encaminhou-se, gulosa, na direcção do assado, acabando por tombar, com um grito ensurdecedor, dentro do poço, que o esperto Archelocus tinha utilizado como armadilha. A jovem só sofreu algumas escoriações, mas ficou um pouco atordoada com a queda.
Deixando Diocles a vigiar a jovem, Archelocus diriguiu-se à cidade de Megara, capital de Megaris, para chamar todos os que quisessem vir apreciar aquele espéctaculo.
Sempre amantes de uma boa confusão, em breve muitos cidadãos o seguiam, excitados. De regresso ao local onde a gigante estava aprisionada, acompanhavam-no também alguns soldados e políticos da República. Também lá ia o velho Eurykrates, que julgava prever grande fortuna para Mégara com a chegada daquela colossal mulher. Lilit continuava desfalecida, mas todos tiveram grande espanto ao contemplar aquela jovem de tão corpulentas dimensões. O velho sábio logo disse:
-Temos de construir uma gigantesca gaiola de ferro para aprisionar a gigante!
-E como fazemos para tirá-la do poço quando ela despertar?-perguntaram alguns.
-Damos-lhe comida com um forte soporífero e içamo-la à força dos braços dos nossos escravos, com uma roldana!
-Bem pensado!-exclamaram os que ali estavam.
A gigante por fim despertou. Soltava gritos e urros de desespero que eram ensurdecedores para os que ali estavam. Na situação em que se encontrava, Lilit não conseguia sequer mexer os braços. Todos admiravam a beleza da jovem, que tinha só o pescoço e a cabeça fora do velho poço. Os seus longos cabelos louros encaracolados espraiavam-se ao redor do poço, lançando centelhas douradas à luz do sol da manhã. Os seus olhos verdes eram como duas grandes esmeraldas que faiascavam de medo e raiva contra aquelas pequenas criaturas que a atormentavam. Já se sentia um pouco arrependida por não ter seguido os conselhos do seu falecido pai e o medo começava a invadi-la.
Concluída a gaiola de ferro, Lilit foi alimentada com um porco recheado com soporífero, e sem dar por isso caiu num sono muito profundo. Foram instaladas perto do poço uma alta trave e uma roldana para conseguirem içar a jovem de dentro do poço e colocá-la na jaula.
Assim que terminaram esta tarefa, todos se puseram a caminho dos arredores da cidade, onde contavam exibir a jovem para deleite dos cidadãos e dos viajantes que percorressem a cidade.
Mas a jovem Lilit tinha um grande apetite e devorava ao pequeno almoço dez pães molhados em vinho. Ao almoço era capaz de comer um porco inteiro nos dias de maior apetite e não era demais! Uvas eram aos cestos, para matarem o seu apetite galopante, e vinho aos dez litros por dia!
Eurykrates, o sagaz e sábio ancião, reuniu-se com os dirigentes da cidade e fez-lhes uma espantosa comunicação: tinha ido de propósito, correndo perigos e sofrendo canseiras, ao óraculo de Delfos e confirmara os seus presságios: a gigante traria grande sorte e prosperidade à cidade e devia mesmo ser coroada rainha de Megaris! Thyrsos logo se levantou aos berros, bem como outros dos que dirigiam a República. Não estavam dispostos a perder os elevados lugares que ocupavam.
-Mas,-disse-lhes Eurykrates-o que é que têm a perder? Se correr bem todos ficamos a ganhar e manobramos na sombra o que se passar em termos de política; se correr mal, pomos as culpas em cima dela e retomamos os nossos lugares!
-És na verdade, avisado!-disseram-lhe os dirigentes.
-Proponho que em primeiro lugar se construa um palácio para abrigar condignamente a nossa rainha, mas um de onde ela não possa sair, sem ser por nossa vontade! Tenho mais uma ideia a germinar, mas ainda é cedo para revelá-la!
Os dirigentes da cidade resolveram confiar na sagacidade do velho sábio e confiar nos seus conselhos. A jovem Lilit, que inteligente, já começava a aprender o grego, foi levada na sua gaiola para uma grande clareira, junto às muralhas onde principiavam a ter lugar as obras de construção do seu futuro palácio. Escravos aos milhares circulavam por ali, e iam-se gastar muitos e muitos talentos na construção de tal obra. Afirmando que era para sua segurança, mantiveram Lilit presa e à sua volta o palácio ia crescendo a ritmo acelerado. Quando ficasse construído teria muitas portas, mas de pequena dimensão, apenas para os escravos, guardas e cidadãos de Megara poderem passar. A rainha seria prisioneira no seu próprio reino! No lado mais afastado do palácio existiria uma gigante porta de pedra de dez metros de altura, por onde poderia passar a rainha, mas para abri-la seriam necessários muitos escravos a manusear as roldanas.
Apesar de tudo, Thyrsos não estava pelos ajustes. Considerava tudo aquilo um desperdício de dinheiro e de tempo! Não via que utilidade poderia ter aquela gigante como rainha, mas o povo estava entusiasmado, pois os videntes e magos às ordens de Eurykrates tinham cumprido o seu papel de difundir os melhores boatos acerca da rainha e do que os óraculos previam para a cidade.
Archelocus e Diocles também não tinham razão de queixa: o primeiro tinha recebido duzentos dracmas e vinte porcos e o segundo cem dracmas e dez porcos como recompensa do seu serviço prestado a Megara. Mais do que satisfeitos, tinham dissipado os porcos em festins com os amigos nas tardes quentes de Verão, e em generosas ofertas a um dos muitos templos que Apolo tinha na cidade. O dinheiro tinha sido gasto com hetaerae, das mais belas e inteligentes que havia em toda a Grécia, e que muito deslumbraram os dois jovens homens.
Quase todos na cidade já tinham visto a bonita gigante, que os deuses pareciam destinar ao governo de Mégaris, mas o jovem Timon, guerreiro regressado há pouco de um posto na ilha de Salamís, quando ficou a par das novidades, quis ir admirar tão espantosa mulher e quando a viu o seu coração pôs-se a correr acelerado como uma corça. Sentiu como se lhe dessem com um cacete na cabeça e compreendeu de imediato que estava apaixonado pela bela gigante. A rainha conseguiu descortinar o rosto daquele mancebo no meio da multidão que todos os dias a ia mirar de boca aberta! Sentiu uma forte atracção por aquele jovem que assim lhe surgia, mas muito triste dada a grande disparidade de tamanhos entre eles, que impossibilitavam qualquer relacionamento amoroso, que não fosse platónico.
Graças aos esforços dos numerosos escravos, não tardou a que o palácio estivesse concluído, resplandecente no mármore branco que tornara Megara famosa, e Lilit pôde enfim ser libertada da sua gaiola de ferro, apenas para se encontrar noutra gaiola metafórica, uma gaiola dourada da qual não tinha a chave, apesar de ser rainha. Vivia os seus dias confinada naquele palácio, visitada com assiduidade por Timon. Agora Lilit ansiava por aquelas visitas, eram a sua única alegria. Até sonhava que fugia dali com o mancebo e que viviam felizes. Nunca se esquecia de fazer as oferendas a Apolo e longas filas de escravas suas levavam-lhe ovelhas, porcos e vinho para saciar os seus apetites e apaziguar a sua ira.
Um belo dia, Eurykrates apresentou por fim a sua ideia aos dirigentes da República. Numerosos escravos transportavam um armadura gigante, que a rainha deveria vestir.
-Estou certo que a rainha por si só vale por um exército, e com ela a combater podemos forçar outras cidades a pagar-nos tributo!-disse o velho.
-És tonto!-replicou-lhe o viperino Thyrsos-Assim que se apanhar fora do palácio ninguém mais lhe põe a vista em cima!
-Pensei nisso!-redargiu Eurykrates com um sorriso matreiro-para impedi-lo é necessário que tomemos como prisioneiro um certo jovem que muito visita a rainha e que parece ser a causa dos seus suspiros-verbalizou o sábio com velhacaria na voz.-Se quiser voltar a ver o seu amado, sabe que tem de regressar para o palácio.
-Bem pensado!-felicitou-o Olus, outro dos dirigentes da República.
O infeliz Timon foi conduzido à prisão, sujeito a uma dieta de pão e água e a rainha murchou com a sua ausência, como uma papoila arrancada da terra. Foi visitada passados alguns dias por uma delegação de políticos, que lhe expuseram a sua descarada chantagem, à qual ela não ousou resistir. Assim, e tendo em vista uma expedição que se organizava contra a cidade de Corinto, a gigante porta do palácio foi pela primeira vez aberta por uma multidão de escravos e a rainha equipada com a sua armadura. Os soldados de Megaris marcharam em direcção à vizinha Corinto, com a rainha na rectaguarda.
Os coríntios nem queriam acreditar quando viram aquela gigante que, com a sua espada, começava a abrir grandes clareiras nas suas fileiras! Não houve general que conseguisse segurá-los e em breve debandaram em pânico. Entusiasmados por aquele sucedido decidiram-se então a marchar sobre Tessália, com o intuito de forçá-la a pagar tributo. Mais uma vez o contributo da rainha foi preponderante e nem as flechas que a atingiram conseguiram quebrar-lhe o ânimo, pois queria voltar a ver o seu Timon.
De regresso a Megara, as tropas foram recebidas em festa e os templos de Apolo foram enfeitados de flores e recheados das carnes gordurosas do porco e do carneiro. Lilit foi reconduzida ao palácio prisão, e teve permissão de ver o jovem Timon, passando junto da prisão onde continuou encarcerado. Tinham descoberto enfim um método de garantir a obediência cega da rainha e estavam finalmente a colher os frutos da sua perfídia. Confirmados os boatos da eficácia em combate da rainha gigante, as cidades derrotadas de Corinto e Tessália, bem como muitas outras, incluindo Atenas, enviavam os seus tributos de rebanhos, varas, prata e ouro para garantir a paz. Claro que quem beneficiava com estes tesouros não era nem a rainha, nem o povo, mas os políticos que enriqueciam e doavam a Eurykrates generosas fatias.
Lilit tinha caído numa melancolia tristonha e até tinha perdido o seu proverbial apetite. Contudo, num sonho, tinha-lhe aparecido um corvo que a enchera de esperança, ao dizer-lhe que a sua liberdade estava para breve.
Quando chegou a Lua Nova, a rainha teve um pesadelo confuso e doloroso, em que se misturavam os políticos da República, o corvo, o seu vale perdido nas montanhas, o seu amado Timon e sentia no seu corpo as dores da tortura! Despertou coberta de suor e não soube dizer onde estava. Tudo à sua volta lhe parecia gigante e só passados alguns minutos compreendeu que já não era a gigante, como lhe tinham chamado.
Vislumbrou na penumbra do seu quarto o voar negro de um corvo que partia e sabendo que o deus Apolo por vezes assumia essa forma, logo lhe agradeceu mentalmente, jurando dar-lhe todos os anos naquele dia, uma ovelha em sacrifício. Doida de contente, engendrou logo um plano para salvar Timon. Sujando as suas roupas com cinza da lareira para se parecer mais com uma escrava, saiu do quarto e na cozinha deserta agarrou uma vasilha de vinho, que colocou à cabeça. Aos guardas da porta, mentiu e disse-lhes que era vinho que a rainha mandava ao seu amado, que devia ter sede naquela noite quente. Os guardas riram-se mas deixaram-na passar. Caminhando o mais rápido que pôde, em breve estava junto da prisão.
Os guardas interpelaram-na e ela disse-lhes que o vinho que levava à cabeça era uma oferta do grande Thyrsos! Partiu e aguardou escondida ali perto. Como ela esperava em breve os dois homens estavam muitíssimo bêbados e não tardaram a adormecer com um ressonar barulhento. Lilit roubou-lhes as chaves da cadeia e em breve estava junto de Timon. Este dormia no chão da sua cela e quando ela o chamou nem queria acreditar no que os seus olhos viam.
-És mesmo tu, minha rainha?!-disse-lhe incrédulo.
-Sim, sou a tua Lilit, tua para sempre!-disse ela-Agora partamos desta cidade! Trouxe comigo uma bolsa de moedas e podemos arranjar um barco na costa.
Os dois jovens partiram em passo acelerado e com o auxílio de uma corda improvisada conseguiram descer as muralhas da cidade, deixando para trás uma sentinela atordoada. Caminharam aquela noite e mais um dia, com breves períodos de descanso e quando anoiteceu de novo, Timon roubou um barco de pesca e partiram os dois para o Sul em direcção à ilha de Amorgos.