AS DUAS-CIDADES
By João Franco

Não havia outra solução. Vali, a grande sacerdotisa do povo castoriano, voltou a consultar os dados que o gigantesco computador biónico projectava no ar diante dela e confirmou todos os seus anteriores receios. Se não abandonasse o planeta de Xanthos, o seu povo tinha os dias contados! Como se não bastassem as radiações do minúsculo sol em torno do qual o planeta orbitava, que obrigava há séculos os castorianos a viver no subsolo, agora Vali, a sacerdotisa, a líder, a descendente de Castor, sabia sem margem para dúvida que as reservas essenciais estavam a esgotar-se. Sem água, sem alimentos e sem energia, a vida humana pereceria para sempre naquele planeta maldito.

Houvera um tempo em que o planeta fora belo e fértil, e os colonos tinham prosperado naquelas condições que lhes eram quase tão propícias como as da Terra. Agora, graças às doentias radiações, a superfície de Xanthos era cada vez mais desértica, onde os humanos, sujeitos a terríveis mutações, definhavam a um ritmo crescente.
Vali dirigiu-se a Mentor:

-Confirmam-se as últimas projecções?

-Infelizmente para todos, sim. E não há nada que possa ser feito no planeta para evitá-lo. A única solução é a fuga, e quanto mais rápido melhor.

Vali sentiu-se desesperada, mas teve de conter dentro de si a avalanche de sentimentos que a assaltaram às palavras de Mentor. Era necessário que o Conselho se reunisse sem demora, mas em segredo, para evitar o pânico entre os cidadãos das Duas-Cidades. Génesis, a gigantesca nave, aguardava no seu hangar secreto no deserto, pronta a partir com alguns milhares de castorianos a bordo, bem como autómatos e outros bens que lhes permitissem sobreviver fora daquele planeta moribundo. Já há algumas décadas que o Conselho sabia da existência do planeta Éden, como o tinham baptizado, na estrela XBW417, descoberto após centenas de anos de buscas infrutíferas nas galáxias mais próximas de Xanthos.

Agora que os autómatos tinham tido acesso aos planos da propulsão cósmica, redescoberta numa das luas de Xanthos, tudo se conjugava para precipitar a sua partida para um novo lar.

Vali deixou a sala do Conselho onde estivera a trabalhar com Mentor e dirigiu-se pelas ruas da cidade subterrânea ao templo, onde milhares de crentes veneravam Castor, o fundador da cidade e seu ancestral. Apesar do seu número, os fiéis eram muito menos do que no passado. Podridão, pensou Vali. O ateísmo grassava nas Duas-Cidades e cada vez mais a polícia religiosa tinha de intervir para lembrar às pessoas os seus deveres.

Há muito tempo atrás, as Duas-Cidades tinham florescido, e o espírito daquela civilização tinha-se elevado. Agora definhava e os habitantes afastavam-se das suas ocupações honestas e sóbrias para se entregarem às drogas psíquicas e a um hedonismo desenfreado. A grande sacerdotisa buscou o caminho de casa para se preparar para a reunião que se avizinhava.

Naquela noite, o Conselho reuniu-se de emergência e Mentor foi convocado. Vali tomou a cabeceira da mesa, pois naquele estado teocrático, um descendente de Castor era sempre o Presidente do Conselho. Para além dela, estavam presentes o chanceler da cidade, Morgos, o General Tau, comandante das forças de segurança, a chefe da polícia, Mikyza, o responsável do programa Éden, o cientista Nargos, o ministro dos recursos Alabir e o chanceler de Malgor, Usius. Vali dirigiu-se ao temido General em primeiro lugar:

-Que novidades há da frente malgoriana?

Todos os presentes viraram as suas atenções para o General e sustiveram as suas respirações enquanto este começou a falar:

-Foi uma vitória histórica! Os da superfície tentaram entrar na cidade uma vez mais e dei ordens para que fossem exterminados! Se conseguissem entrar em Malgor teríamos sofrido um massacre! Desta forma, nenhum escapou para contar a história e os seus corpos são agora reciclados nas fábricas da cidade!

A frieza do general chocava sempre Vali e pensou, como habitualmente, que ele já não era 100% humano, com os implantes que substituíam o que as guerras contra os da superfície tinham cobrado ao seu corpo.

Morgos, o chanceler disse então:

-Sabemos que os recursos deles também estão no fim e que recorrem ao canibalismo! Os da superfície não cessarão os seus ataques desesperados em busca de refúgio da radiação! A situação é no mínimo muito delicada. E se eles chegam a Castoriana?

Ninguém lhe respondeu a essa retórica questão e Vali perguntou:

-Ministro Alabir, podeis dizer a todos qual é a nossa verdadeira situação?

Alabir, bem nutrido, fazia jus à sua posição, e envergava como todos eles a túnica escarlate dos Conselheiros e o medalhão com a esfinge de Castor. Antes de começar a sua alocução segurou com ambas as mãos o medalhão e encomendou-se a Castor.

-A situção é crítica e sem esperança de retrocesso! Pelo santo nome de Castor! O abismo está à espreita! As reservas de água não durarão com o consumo actual mais do que dois meses e sem elas as culturas hidropónicas morrerão também nas estufas. O pouco trítio que resta serve para as necessidades básicas durante um bom tempo e é possível recuperar mais algum do arsenal…

-Protesto!-gritou Tau! Ficaríamos indefesos face a um ataque maciço dos da superfície!

Vali teve de acalmar os receios  do general, quanto ao desmantelar das suas preciosas bombas e perguntou a Alabir:

-E os cristais para os conversores de energia?

-Precisamos de outros, pois estes têm a força vital quase esgotada. E se há mais Eles não sabem, ou não nos querem dizer.

Ao ouvir a menção a Eles, Vali sentiu um arrepio, e o desconforto instalou-se na sala.
Sangue e morte- pensou Vali. Poderá uma civilização que nasce disto sobreviver? Alabir prosseguia:

-Os autómatos necessitam de minérios raros para se auto-regenerarem e não será neste planeta e com as condições actuais que os encontraremos.

Vali interrompeu-o:

-Bom, já sabemos com o que contamos e Mentor confirmou os cálculos. A situação é grave, mas a prioridade máxima é o projecto Éden, do qual Nargos nos falará agora.
Este levantou-se, nunca gostara de falar sentado. As olheiras indicavam que nos últimos tempos pouco dormira, bem como as suas preocupações. Enquanto os outros falaram estivera sempre a efectuar cálculos na sua folha magnética, ligada a Mentor.

-Os autómatos construíram os motores como especificado e fizémos os testes. Funcionaram!

Houve aplausos na sala, embora de curta duração.

-Em relação ao planeta todos conhecemos os dados.

Todos anuíram com a cabeça. Conheciam.

-Água em abundância, talvez até de mais. Apenas 1/7 é terra firme, mas o espaço é mais do que suficiente para nós. Fauna e flora diversificadas e abundantes, possibilidade de depósitos minerais no subsolo e outros recursos.

A atmosfera também era propícia, embora tivessem de passar algum tempo em quarentena na nave. Nargos continuava:

…gravidade 1, 17. Muito aceitável portanto. Penso que a Génesis atingirá a superfície de Éden em três anos no máximo, o que é melhor do que as perspectivas iniciais apontavam. Há a questão principal: Só há capacidade para oito mil pessoas na nave!

Vali levantou-se, e fitando os restantes conselheiros disse:

-Esse problema tem sido a minha ocupação nos últimos tempos e a solução a que cheguei, em conjunto com Mentor, não é isenta de dor. Mas não há outra saída ética. Os não escolhidos devem ser eliminados de forma humana, para serem poupados a uma morte lenta e dolorosa!

Morgos e Mikyza levantaram-se em protesto, mas a voz ligeiramente mecânica de Mentor fê-los calar:

Basta! Não há outra solução se queremos evitar um banho de sangue. Ou querem vê-los a morrer à fome e à sede, a definharem lentamente? E a matarem-se uns aos outros? Com base em diversas variáveis, escolherei os mais aptos para seguirem viagem. Os outros receberão com a sua ração de alimentos uma dose fatal de um veneno que em segundos, e sem dor os aniquilará.

-Para além dos conselheiros e seus familiares,que também seguirão na Génesis, bem entendido-disse Vali. É uma decisão brutal, mas a mais humana a tomar.

Com alguma resistência, todos acabaram por votar a favor, e foi atribuída total prioridade ao projecto Éden. Foi a chefe da polícia quem fez a pergunta mais embaraçosa:

-E Eles? Que faremos com Eles?

Poucos eram os cidadãos das Duas-Cidades que sabiam da existência d’Eles, e os que sabiam, mantinham por vergonha aquele segredo bem enterrado. Quando os humanos tinham chegado a Xanthos , o planeta não estava desabitado, como antes se supusera, mas era povoado por uma espécie muito antiga e avançada, os Lador, que totalizaria mais de 25 milhões de indivíduos. Dominavam a telepatia e outras capacidades mentais e possuíam algo de muito valioso: os cristais de Xeram dos quais extraíam a energia de que se alimentavam. Sendo um povo pacífico, que nem sequer tinha cidades, não tinham sobrevivido às ferozes investidas dos humanos, que os tinham chacinado. Milhões de Lador tinham perecido e os sobreviventes tinham-se refugiado nas montanhas com os preciosos cristais, com os quais viviam em simbiose.

Castor, o cientista renegado, feroz opositor do manipulador governo planetário, tinha descoberto o seu esconderijo e roubara-lhes os cristais para uso das Duas-Cidades. Os autómatos armados de Castor, tinham-lhes tirado as preciosas pedras à força e dos muitos milhares que tinham sobrevivido ao Grande Massacre, apenas algumas centenas tinham sobrevivido, para sempre levados para Castoriana e encerrados nas Câmaras mais profundas juntamente com os cristais. A vida dos Lador era muito longa e ainda havia alguns da época de Castor. Por motivos de segurança as fêmeas estavam quase todas esterilizadas e quando surgia uma cria era um grande motivo de festa.

Na prática, as Duas-Cidades eram como sanguessugas, que se alimentavam em parte da força vital dos Lador.

-Libertem-nos, disse Vali. Mas discretamente.

Sendo formas de vida tão diferentes dos humanos, quem sabe se até sobreviveriam às radiações e ao fim dos terrestres naquele planeta.

Vali deu por terminado o Conselho, que seria o último naquele planeta e desta vez, ao contrário do que era hábito, os Conselheiros dispersaram logo, ao invés de ficarem por ali à conversa até altas horas.

A população das Duas-Cidades estranhou os cortes e o racionamento dos abastecimentos, que foram justificados pelo chanceler, com a situação de guerra que se vivia em redor de Malgor. Em verdade, os abastecimentos estavam a ser desviados para os porões da Génesis, bem como outros equipamentos. Como ninguém trabalhava nas Duas-Cidades, para além dos autómatos, tudo lhes parecia normal e assistiam com indiferença às idas e vindas dos seres mecânicos.

Nos seus aposentos, Vali bebia um copo de vinho de líquenes e pensava no extermínio que teria de ser executado. Pesado fardo o do seu cargo! Mas não queria de modo algum ver repetir-se ali no subsolo as cenas de pânico e de violência que tinham ocorrido à superfície, quando se descobriram as mentiras do governo planetário, ao começarem as primeiras mortes devido à radiação. Castor tinha muitos seguidores que o adoravam, pois fora ele quem descobrira o perigo iminente vindo da estrela em torno da qual Xanthos orbitava, e avisara repetidamente o governo planetário, que sempre minimizara as suas descobertas. Estalara a guerra civil e uma torrente de sangue correra pelas ruas das principais cidades. Ellios, a maior e a mais rica das quatro luas que orbitavam Xanthos rebelara-se e imagens de mineiros barbudos e suados, de armas em riste tinham corrido o planeta. Em resultado disso, Ellios tinha sido atingida por várias bombas de hidrogénio que a calaram para sempre. A tecnologia do planeta regredira muitíssimo e só recentemente, uma ousada expedição conseguira recuperar o precioso segredo da propulsão cósmica.

Vali contemplou do alto dos seus aposentos a cidade, onde a luz artificial tudo iluminava. Daquela altura, as pessoas que circulavam nas ruas, pareciam mais pequenas do que formigas e entregavam-se como era tradição às artes ou, como cada vez mais acontecia, à ociosidade. Com um aperto no peito, Vali pensou que na manhã seguinte não haveria risos joviais nas ruas, mas antes pranto e gritos pela cidade e não pôde evitar duas lágrimas que lhe correram pelas faces. Faltava o último acto daquela tragédia. Vali percorreu devagar e em silêncio os corredores metálicos que a conduziram até à sala do Conselho. Ali chegada, começou a trabalhar com Mentor, pedindo-lhe que abrisse o ficheiro do projecto Éden.

Não contendo as lágrimas, Vali deu a ordem que enviaria a morte aos lares de milhares dos seus irmãos.

João Franco (n. 1977 em Lisboa), é licenciado em Relações Internacionais e pós-graduado em Estratégia pela Universidade Técnica de Lisboa. Publicou dois poemas na colectânea Poiesis, vol. XVI (2008), a colectânea poética Azul Profundo (2012) avançando depois para a prosa com o conto O teu semblante pálido, na Revista Lusitânia (2013). No campo da não-ficção é autor do livro Sun Tzu e Mao Zedong-Dois estrategas chineses (2012) e tem artigos publicados em periódicos como Finis Mundi, Revista Intellector, Revista de Geopolítica, Nova Águia, Boletim Meridiano 47, O Dia e Jornal de Defesa e Relações Internacionais. Tem também experiência na área da tradução.