A DISSOLUÇÃO DO REGIMEN CAPITALISTA

Por Teixeira Bastos (1897)

I

Ninguem hoje contesta que o homem tem direito á vida. A legislação punindo o abôrto, reconhece-lhe esse direito ainda antes mesmo de nascer. O direito á vida subentende o direito ao trabalho, porque é o trabalho o meio legitimo de obter recursos para viver, isto é, de occorrer ás necessidades inilludiveis e primeiras do homem—a alimentação, o alojamento e o vestuario.

Na sociedade actual, pode o homem exercer sempre o trabalho de maneira que satisfaça a essas necessidades?

Digam-no os factos.

Um pavoroso incendio, em novembro de 1895, devastou em poucas horas as principaes officinas da Companhia Real dos Caminhos de Ferro Portuguezes, reduzindo á miseria cêrca de 600 operarios, que n’ellas trabalhavam quotidianamente e que de repente, por esse motivo, ficaram sem trabalho, e até sem ferramenta aquelles que a tinham sua.

A companhia tinha os valores, que o incendio destruiu, devidamente garantidos por meio de seguros contra o risco de fogo. Mas os operarios? Esses, coitados, não tinham o seu trabalho garantido, nem sequer as suas ferramentas no seguro. Foram portanto estes as verdadeiras e unicas victimas do espantoso incendio.

Ora 600 operarios sem trabalho representam 600 familias na miseria, ou pouco menos. Verdade é que o conselho administrativo ou fiscal da companhia procurou attenuar o mal proveniente d’essa terrivel situação; deliberando licenciar os operarios, abriu uma inscripção para todos elles, afim de os readmittir á proporção que as officinas se fôssem reconstruindo; e pagando aos operarios licenciados, até o fim d’aquelle anno, na razão de 50 por cento dos seus salarios normaes.

Mas se esta providencia melhorou um pouco a situação a que pelo incendio ficaram reduzidas perto de 600 familias operarias, não era sufficiente para que essas familias pudessem viver até a re-admissão dos operarios licenciados, já não diremos medianamente, mas simplesmente como viviam  antes do fatal incendio.

Em regra, a féria do operario, qualquer que seja a arte ou o officio que exerce, não excede um minimo com que difficilmente pode occorrer ás despesas de alimentação, alojamento e vestuario. Se difficilmente pode occorrer a essas tres despesas de absoluta necessidade, sendo só, o que não acontece tendo familia? E é exactamente este o maior numero de casos. A mulher e os filhos umas vezes, e outras os paes impossibilitados de trabalhar pela edade ou pela doença sobrecarregam o pobre operario, que com elles tem de repartir quotidianamente o producto do seu parco salario.

Se a mulher ou alguns dos filhos concorrem tambem para as despesas da casa com as suas respectivas férias, não o fazem com partes eguaes ás do operario chefe de familia porque as férias das mulheres e dos menores são excessivamente arrastadas. A exploração capitalista exerce-se com mais fôrça sobre as mulheres e os menores. E no emtanto as mulheres e os menores para satisfacção das suas necessidades recebem proporcionalmente mais da casa commum do que a parte com que para ella contribuem.

N’estas circumstancias as 600 familias de operarios, ou pouco menos, vendo reduzido a metade o salario do chefe de familia, a unica ou a principal fonte do todas as despesas domesticas, haviam de sentir a miseria entrar-lhes pela porta dentro com todas as suas lamentaveis e horrorosas consequencias.
De um dia para o outro ficaram 600 operarios sem trabalho e perto de 600 familias na miseria, e isto sem que por forma nenhuma tivessem contribuido com a sua conducta para essa ruina. Mas soffreram todas as consequencias da destruição que não prepararam nem puderam evitar.
É um exemplo; poderiamos citar tambem o caso frequente de fabricas que fecham temporariamente ou diminuem aos operarios os dias de trabalho, porque teem os seus depositos abarrotados de productos sem extracção.

Denunciam todos esses casos, como tantos outros que todos os dias acontecem, em menor escala, que a actual sociedade assenta em bases falsas: o regimen capitalista dá origem a uma série interminavel de injustiças, que victimam a população operaria; as classes productoras por excellencia, tão mediocremente remuneradas.

A questão social surge espontaneamente de factos desta natureza.

Desde que a sociedade, como se acha organisada, pode recusar ao homem o exercicio do trabalho,–pois outra cousa não é impedir-lhe ou embaraçar-lhe de qualquer modo esse exercicio normal,–pondo-se em flagrante contradicção com o principio fundamental, admittido nas legislações, do direito á vida, é evidente, que são falsas as bases em que assenta, e portanto que atravessa verdadeiramente uma phase de transição.

A sociedade capitalista com o seu feudalismo industrial tende já a dissolver-se. Aponta esta tendencia o dr. Léon Winiarski n’um bello artigo sobre o _Materialismo economico e a psychologia social_.(_La Revue Socialiste_ n.º 132, Decembre 1895.)

Diz elle: “Se este estado de cousas persiste até o presente e se foi necessario no interesse da productividade, já encerra comtudo os germens da dissolução.

“O desenvolvimento do machinismo cresce de dia para dia, tornando superflua uma parte cada vez maior da população.

“O desenvolvimento inaudito da productividade do trabalho está em antagonismo com a lei economica que condemna o maior numero á exclusiva satisfacção das necessidades estrictamente indispensaveis. N’estas condições, a producção excede periodicamente o consumo, o que causa no mercado uma accumulação de fazendas que não encontram compradores: é uma crise. Este estado de cousas ameaça a sociedade nos seus fundamentos. Mas o mal contém em si mesmo um remedio: a producção concentra-se sem cessar: ella organisa os operarios em um partido socialista que transformará a producção dando-lhe novas bases, adaptando-a ás novas necessidades da sociedade.

“Terá isto por consequencia uma transformação nos dominios da moral, do direito, da politica, etc., os quaes tomarão por alvo a emancipação inteira do individuo.”

A tendencia verificada pelo dr. Léon Winiarski observa-se em todos os paizes. Na Allemanha, na Inglaterra, na França, na Belgica, por toda parte emfim, o partido socialista está adquirindo novas forças e uma influencia directa sobre a marcha das cousas publicas cada vez mais accentuada.

Correlativamente não é difficil observar uma decadencia gradual, mas de dia para dia mais palpavel, no interesse que despertam as questões da politica metaphysica e, pelo contrario, uma invasão progressiva das questões concernentes á economia social.

Entre nós, onde o proletariado não tem comtudo a importancia numerica que tem n’outros paizes, não deixa de se sentir a corrente socialista que agita as sociedades contemporaneas; não será até difficil observar symptomas indubitaveis de que tambem já em Portugal começou a decadencia ou a dissolução do regimen capitalista.

II

Os symptomas caracteristicos da decomposição do regimen capitalista accentuam-se com mais ou menos fôrça em todos os paizes.

Citemos factos.

Um grande industrial de Bochum, importante e rica cidade da Westphalia, foi accusado não só de uma falsificação prejudicial para o Thesouro, como da responsabilidade de muitas mortes, occasionadas em accidentes de caminhos de ferro, para os quaes fornecêra rails de uma composição voluntariamente imperfeita. Este industrial, que defraudava a nação e punha em risco imminente a vida dos viajantes que circulam nos caminhos de ferro do Estado, M. Baare, era, segundo noticiava _Le Temps_ de 8 de fevereiro de 1892, “um dos homens de confiança do principe de Bismarck nas questões economicas, um dos iniciadores do systema proteccionista, membro do conselho d’Estado e do conselho de administração dos caminhos de ferro do Estado, conselheiro intimo do commercio, presidente da camara de Commercio de Bochum, director de um dos maiores estabelecimentos industriaes da Allemanha, e condecorado com enorme quantidade de venéras!” Sobre esta alta personagem do imperio germanico pesou a esmagadora accusação, comprovada por um jornalista, de se ter prestado, durante longos annos, á falsificação systematica dos puncções applicados aos productos das suas officinas.

Corria ha muito tempo em Westphalia o boato de fraudes gigantescas, de que era victima a Fazenda publica, praticadas sem o minimo escrupulo pelos principaes contribuintes de Bochum. A _Gazeta do Povo_ tornou-se écho d’esses rumores, e M. Fussangel, redactor d’este jornal, procedeu pessoalmente a um inquerito, procurando a justificação das vagas accusações que andavam em todas as bôccas. A investigação feita pelo jornalista de Westphalia teve fecundos resultados, e a _Gazeta do Povo_ pôde não só certificar a existencia de falsas declarações, prestadas pelos maiores contribuintes, relativamente aos respectivos rendimentos sobre que havia de incidir o imposto; mas, o que era muito mais grave, denunciar uma série de delictos condemnaveis no duplo ponto de vista da segurança publica e da moralidade commercial. A opinião publica agitava-se com taes revelações e as auctoridades viram-se forçadas a proceder a um inquerito administrativo. Do inquerito official resultou, com effeito, a certeza de que o fisco era prejudicado pelas falsas declarações do oitenta e um dos maiores contribuintes de Bochum em 600:000 marcos, isto é, mais de 59 por cento do seu rendimento, e que entre os culpados se contavam M. Baare e mais dezesete membros da municipalidade.

Apesar d’esta assombrosa confirmação de uma parte da denuncia, o arrojado jornalista M. Fussangel foi condemnado a alguns mezes de cadeia por gratuitas imputações quanto á falsificação attribuida a Baare. Mas embora condemnado, o redactor da _Gazeta do Povo_ não desanimou. Refugiou-se por algum tempo, antes de cumprir a pena, e proseguindo no inquerito particular, conseguiu publicar uma série de documentos irrefragaveis, que demonstravam a realidade das falsificações e a sua distribuição n’um periodo de dezeseis annos, de 1876 a 1892!

O triumpho obtido por M. Fussangel foi esmagador para o grande industrial. A opinião publica condemnou o delapidador e o falsificador que privava com as sumidades do imperio; mas por uma anomalia escandalosa, a justiça não ousou pedir contas ao principal auctor dos actos criminosos; limitou-se a instaurar um processo contra os seus cumplices, fautores secundarios, ou antes seus instrumentos passivos.

Mais retumbante do que este, e não menos significativo, foi o escandalo do Panamá. A questão do Panamá não foi um mal originado pelas instituições republicanas por que se rege a França; affirmal-o, se não é uma prova de má fé do facciosismo monarchico, demonstra pelo menos completa ignorancia das sciencias sociaes. Esse escandalo representa apenas um apostema no estado de decomposição a que chegou o feudalismo capitalista. Deu-se em França, não por causa da republica, mas apesar da republica; e deu-se unicamente porque a nação franceza, como todas as outras nações civilisadas, atravessa uma profunda crise, d’onde ha de sahir um novo regimen social. Esta é que é a verdade. E tanto assim, que, ao percorrermos a imprensa de todos os paizes, vimos denunciar logo com a designação cosmopolita de _Panamás_ a infinita série de escandalos similares que mancham o mundo financeiro nas differentes nações europêas e americanas. Por toda parte a mesma sêde de vida de gosos, a mesma audacia da captação de riquezas, o mesmo desvergonhamento na compra e na venda das consciencias; por toda parte o mesmo ideal do capitalismo:–viver á larga sem trabalhar!

Benoit Malon, o notavel pensador prematuramente fallecido, a proposito do escandalo do Panamá, disse que todas as nações, quer sejam governadas pela monarchia, quer pela republica, teem presentemente as suas chagas: “Todas as coisas eguaes, escrevia o auctor do _Socialismo integral_, a unica differença quando ha alguma n’esse caso, entre a monarchia e a republica, é que na primeira abafa-se o escandalo, emtanto que na segunda faz-se a luz e os prevaricadores teem pelo menos a punição da deshonra publica.

“Mas, ainda uma vez, n’estas desgraças publicas, não é da forma politica do governo, mas do systema social, que se trata. Vemos mais uma prova d’isso no facto de que, os que receberam cheques ou commissões do Panamá, são talvez mais numerosos e mais ávidos do lado monarchico. Saibamos ver com equidade; o mal resulta da furia do ganho individual alimentado pela forma capitalista da producção e attrahido pela febre do jôgo, que n’este tempo de anarchia economica e de iniquidades sociaes, desanima o trabalho, corrompe todas as formas da troca e transforma os mercados financeiros em cavernas dos quarenta ladrões.”(_Une protestation motivée–Revue Socialiste_ n.º 96, Decembre, 1892.) Na verdade, nem a monarchia, nem a republica se compromettem com os escandalos do mundo financeiro, se os poderes constituidos não extendem sobre os criminosos a capa da misericordia, nem exercem em favor d’elles a benevolencia ou a protecção.

A França republicana teve o bom senso de não se comprometter, como succederia se cobrisse paternalmente os politicos prevaricadores. O parlamento, de todas as vezes que se tem agitado a questão, mostra sempre desejar que a luz incida sobre o escuro caso.

Mas o grande escandalo, o verdadeiro escandalo do Panamá, está no desapparecimento de _mil e trezentos milhões de francos_, cobrados pelo conselho de administração da companhia. Os _cinco_ ou _dez milhões_, consumidos na corrupção dos homens politicos, figuram como um minimo relativamente insignificante: É isto um incidente escandaloso, mas muito secundario, no conjunto do escandalo monumental.

Como se sumiram _mil e trezentos milhões de francos_ n’uma obra ainda apenas começada; quando, ao lançarem a idéa, os promotores do canal do Panamá asseveravam que uma somma de _seiscentos milhões de francos_ era sufficiente para o rompimento completo do isthmo? Aqui é que está o grande escandalo, como observou Gustave Ronanet na introdução ao seu livro–_La verité sur le Panamá._ E o total das emissões ainda subiu acima de mil e trezentos milhões de francos; tudo se subverteu n’esse immenso desastre. Essa somma enorme, mais de 234:000 contos da nossa moeda, ao par, representava as economias de innumeras familias da França, o producto do trabalho accumulado, durante annos e annos, por individuos das classes laboriosas, que incitados pelo principio da previdencia juntavam um pequeno capital para a velhice ou para a doença. Tudo desappareceu n’esse insondavel sorvedouro chamado Companhia do Panamá.

A avidez dos legisladores, n’esta vergonhosa e repugnante questão, ficou como uma miseravel insignificancia ao lado da perversão moral de outras classes de individuos. Charles de Lesseps, na commissão de inquerito, declarou que “não foi tanto no mundo politico como no mundo dos salões, que encontrou ávidas exigencias, que teve de dar sommas importantes, numerosas participações de garantias, para alcançar o favor dos que preparam a opinião mundana.” Logo que se annunciava uma emissão, os escriptorios da companhia eram invadidos por uma multidão, principalmente da alta sociedade, que reclamava a sua inclusão no syndicato. E d’entre as pessoas do mundo elegante, quanto mais distinctos, quanto mais elevados em posição social, tanto mais avultada era a somma exigida, tanto mais consideravel a participação reclamada. Os exploradores dos capitaes do Panamá descobrem-se até no alto clero, até mesmo no Vaticano. Os parochos recommendavam aos seus freguezes a collocação das economias em acções do Panamá; as folhas clericaes faziam uma activa propaganda a favor da companhia, e até, na expressão pinturesca de um jornalista francez, _au temps glorieux où les finances du Vatican valsaient sous l’archet de Mgr. Folchi, on joua sur Panamá_. Um extraordinario delirio!

Depois d’este, escusado será mencionar os escandalos similares que nos ultimos tempos teem vindo a publico na Allemanha, na Italia, na Hespanha, no Brazil, por toda a parte emfim, e que representam a dessoração de um systema social chegado ao ultimo periodo da sua existencia.

III

Portugal não constitue uma excepção. A decomposição do regimen capitalista, que tem por symptomas caracteristicos o caso retumbante do Panamá na republica franceza e uma série infinita de Panamás que se desenvolveram em quasi todas as nações da Europa e America, extendeu-se até a sociedade portugueza. Observe-se a depravação a que ella chegou, desorientada por uma politica immoralissima, na qual se sacrificam os interesses nacionaes ás inconfessaveis e desvairadas conveniencias do mais sórdido egoismo. E essa depravação attingiu o seu auge no decurso da grande crise nacional por que passamos. As proporções espantosas que tomou no nosso meio a dessoração de um systema social chegado ao periodo extremo da sua existencia, são tanto mais para admirar, quanto é certo nunca ter esse regimen de feudalismo industrial, alcançado entre nós o desenvolvimento que tomou n’outros paizes egualmente contaminados.

A razão d’este phenomeno é simples.

O desenfreado amor do luxo e do prazer que se propagou, no reinado de D. Luiz, das altas regiões do poder ás classes mais elevadas, d’estas ás médias e ainda d’estas ás inferiores, perverteu todas as noções da economia domestica e da dignidade pessoal, antepondo a ostentação e o enfatuamento ao senso commum e á modestia. A administração publica com os seus esbanjamentos, espalhando a rôdos desassisadamente os milhares de libras dos emprestimos extrangeiros e as valiosas receitas das contribuições, dava o exemplo, deslumbrando e instigando os espiritos desprovidos de uma sã educação moral.

Todos queriam gosar á larga, todos queriam apparentar aquillo que não eram. Difficilmente cada um se conformava com a sua sorte. Isto até onde se extendia o contagio da corrupção que vinha de cima.
Assim se explica tambem o desenvolvimento da emprêgo-mania. As artes e os officios, o commercio e a industria, as profissões liberaes viram desertar das suas fileiras muitos dos seus membros que se trabalhassem diligentemente poderiam ser optimos cidadãos, para se virem alistar nos exercitos numerosos do funccionalismo. Á mesa do orçamento procuravam assentar-se todos os que ambicionavam viver regaladamente sem canceiras e sem trabalhos.

A perversão moral que se traduzia na sêde de gosos e de ostentação, levava a empregar indifferentemente todos os meios, quaesquer que elles fôssem, com tanto que com facilidade se pudesse alcançar o ambicionado fim. Os escrupulos sossobraram deante da fascinação de uma vida inteiramente de apparencias, já que não podia ser de verdadeiras riquezas. Para uns o expediente preferido foi o jôgo de bolsa, em que arriscavam, não a sua fortuna, mas a alheia, ou a exploração de empresas mirabolantes, ás quaes conseguiam attrahir subscriptores ingenuos ou incautos. Outros lançaram antes as vistas para os cofres publicos, abusando da confiança que tinham sabido inspirar ou da posição respeitavel que occupavam. Outros ainda recorreram a processos não menos indecorosos, nem menos repugnantes, para se apoderarem de dinheiro, de valores ou de bens de outrem.

Não é pequena a lista de escandalos que vieram a lume nos ultimos annos. Os escandalos particulares complicam-se com os publicos, e as ruinas de companhias e empresas reflectem-se pesadamente no Thesouro.

Em Portugal a dissolução do regimen capitalista casa-se intimamente á decomposição do systema monarchico constitucional. É por isso em extremo complexa a situação presente do nosso paiz.

Ao movimento de dissolução espontanea do regimen capitalista uniu-se o systema de corrupção adoptado como norma de governo e o ideal egoista do gôso, alimentado imprudentemente pelas altas regiões durante o reinado de D. Luiz. Hoje estamos soffrendo as consequencias da febre de prazeres que contaminou a nossa sociedade.

Se são já muitos os escandalos de que a justiça tomou conhecimento, na sua maioria ainda, se não para sempre, impunes, muitos mais parecem ser aquelles que permanecem na sombra, envoltos em mysterios e denunciados apenas na imprensa por allusões mais ou menos claras ou transparentes. Graves accusações se teem feito por esta forma, nos ultimos annos, a empregados publicos, a funccionarios superiores do Estado ou a individuos que teem mantido por vezes relações intimas com o Governo em negocios financeiros. Graves accusações essas, não só porque os factos indigitados cahem sob a acção do Codigo Penal, como tambem porque anda a elles ligado o credito, a honra e a dignidade da nação portugueza. E essas graves accusações veem por vezes acompanhadas da transcripção de documentos comprovativos.

A opinião publica crê piamente nos escandalos que d’essa forma lhe são relatados pela imprensa; e a indifferença das auctoridades que não submettem os casos aos tribunaes como lhes cumpria, ainda faz augmentar essa convicção. Não se comprehende, com effeito, que a justiça se conserve de braços cruzados, quando se fazem publicamente declarações de crimes praticados contra o Estado por funccionarios publicos no exercicio das suas funcções ou por individuos que abusaram da confiança n’elles depositada pelo Governo. A indifferença das auctoridades em taes casos contribue para augmentar a desmoralisação publica.

Se se pretende arrancar o paiz do estado de depravação em que se encontra, se se pretende reagir contra a immoralidade que campeia infrene nos arraiaes politicos, extendendo-se á vida particular, é indispensavel iniciar uma completa e geral liquidação de responsabilidades. Será este o ponto de partida para a reforma dos costumes que o amor do luxo e do prazer, conjuntamente com a politica de corrupção, alteraram e viciaram de cima a baixo. Não basta prender e punir os culpados menores que se deixaram desvairar por aquella ordem de seducções illusorias; é precioso prender e punir tambem os grandes, mais criminosos ainda que os outros, quer por occuparem uma posição social mais elevada, quer por terem em regra maior illustração, ou ainda porque pelos seus exemplos contribuiram perniciosamente para que aquelles se desviassem da mesma forma, ainda que por differentes processos, do caminho da honra e do dever. Emquanto os grandes potentados ou os grandes funccionarios que delinquiram, gosarem da impunidade dos seus crimes, escusado será esperar que se comece a sério a obra da regeneração moral de que o nosso paiz tanto carece.

IV

Já atraz alludimos á emprêgo-mania É com effeito um dos males que affligem as sociedades contemporaneas, e nomeadamente a portugueza. Tem a sua origem immediata na superabundancia de individuos que se dedicam ás profissões liberaes, abandonando as artes e as industrias exercidas por seus paes e avós. Em vez de procurarem na instrucção, nos estudos a que se consagram, elementos salutares e especiaes para desenvolverem e aperfeiçoarem o trabalho manual ou mechanico, aproveitam o saber que adquirem como instrumento para d’elle se tornarem independentes e invadirem de preferencia as posições officiaes. D’esta tendencia cada vez mais manifesta, apesar das difficuldades creadas com as exigencias de propinas, de exames, de concursos, tem resultado o excessivo desenvolvimento do funccionalismo. É esta, sem duvida, uma das causas geradoras da grande crise economica da actualidade, e provém ainda em parte do preconceito moral de origem biblica que faz considerar o trabalho como castigo imposto ao homem, e em parte da tradição herdada das épochas de conquista em que as artes manuaes eram o apanagio dos escravos ou dos servos. A liberdade, proclamada pela revolução que deu o triumpho politico ao terceiro estado, teve por consequencia, não tanto a rehabilitação ou a dignificação do trabalho, como a abertura das profissões liberaes aos filhos de todas as classes.

A acção do movimento revolucionario que agitou a França no fim de seculo passado e d’ahi se extendeu a toda Europa, foi incompleta. Acabou, é certo, com os privilegios, derribou as barreiras que separavam as classes, mas não resolveu o problema social e moral; o trabalho manual continuou a ser depreciado.
Todavia a obra da revolução tem proseguido no nosso seculo. Fourier, primeiro, com a sua utopia do Falansterio, e Renan, mais tarde, no seu livro _L’Avenir de la Science_,–para não citar nenhum outro,–proclamaram a união entre o trabalho intellectual e o trabalho manual, de modo que um seja como que o complemento do outro. Na mesma ordem de idéas, o dr. Bernardino Machado advogou entre nós, na sua conferencia sobre _A Socialisação do Ensino_, realisada no Instituto de Coimbra, que “a ninguem seja licito seguir um curso de instrucção secundaria, sem que esteja ao mesmo tempo fazendo o seu tirocinio officinal, nem se permitta o accesso a uma faculdade ou eschola superior a quem não seja ainda mestre em alguma profissão.”

O socialismo, cujo partido se tem desenvolvido nos ultimos tempos, vê o problema social e moral, que a revolução franceza não soube resolver, e da sua solução faz a base fundamental da grande transformação economica. Essa solução é verdadeiramente a rehabilitação do trabalho manual; é a sua dignificação, já iniciada em varios paizes, por exemplo, na Allemanha, com as candidaturas operarias. A entrada dos operarios, dos trabalhadores, nos parlamentos assignala o primeiro passo para o levantamento moral dos trabalhos manuaes e constitue o remedio mais efficaz para corrigir gradualmente o mal resultante da superabundancia de individuos que invadem as profissões liberaes e alargam os quadros do funccionalismo.

Sobre a relação entre as profissões liberaes e o trabalho manual, publicou a _Revista de derecho y de sociologia_(Num. 6, junio de 1895.) um importante discurso inaugural do sr. C. Gide, eminente professor da Universidade de Montpellier. N’elle se demonstra que hoje, tanto o progresso economico, como o progresso moral, conspiram para dar maior dignidade ao trabalho manual.

Diz o sr. Gide que a primeira causa de darem os homens, em todos os tempos e em todos os paizes, a preferencia ás profissões liberaes sobre os trabalhos manuaes “é porque o labor material foi sempre muito mais penoso e muito mais duro do que o trabalho intellectual, entendendo por este a somma de trabalho necessario para lograr dignamente uma situação satisfactoria na vida.” As invenções mechanicas teem transformado este estado de cousas, operando uma verdadeira revolução nas condições do trabalho manual. “E emtanto que o trabalho material tende a ser cada vez mais facil, diz o illustre professor, parece que o trabalho intellectual se torna de momento para momento menos attractivo.”

Depois, a lei economica da offerta e da procura tem feito diminuir a facilidade de encontrar bons honorarios ou bons vencimentos nas profissões liberaes, havendo, por exemplo, na prefeitura do Sena 21:088 pretendentes inscriptos para 299 logares que se presumia que vagassem, o na municipalidade de Bruxellas ao logar de porteiro, 75 candidatos, dos quaes eram 33 licenciados em direito, 17 doutores em medicina, 21 engenheiros, 8 chimicos e 1 astronomo.
A mesma lei economica tem elevado cada vez mais o preço do trabalho manual, de modo que, “na actualidade, diz ainda o sr. Gide, um operario distincto ganha decerto mais do que um empregado, do que um agente de commissões, do que um professor primario, do que um cura de aldeia ou do que um alferes.”
Em todos os tempos, sem excluir os modernos, o trabalho manual foi sempre menos considerado do que os trabalhos intellectuaes. Contribue talvez para isso, na actualidade, o facto de que as machinas, ao mesmo tempo que tiravam ao trabalho manual o seu caracter penoso, “privavam-n’o da individualidade, da espontaneidade, reduzindo-o á uniformidade de uma operação mechanica.” É de esperar, porém, que em breve a revolução industrial restabeleça a união entre a arte e os trabalhos materiaes, fazendo com que estes não sejam simplesmente um meio do ganhar o pão.

O illustre professor da Universidade de Montpellier, prognosticando a rehabilitação do trabalho manual, como Fourier e Renan, fechou o seu brilhante discurso inaugural com estas palavras: “Sim; no dia em que o trabalho intellectual e o trabalho manual se hajam reconciliado, abraçado, desposado, terá dado o genero humano um grande passo _para a felicidade_, para a felicidade moral, que seguramente produzirá o sentimento de solidariedade com os nossos semelhantes, realizado n’um commum trabalho e n’um commum destino, e para a felicidade physica tambem, que ha de resultar da harmonia das funcções o da plenitude da vida.”

V

Estamos em plena decadencia. A sociedade industrial-capitalista que se fundou sobre as ruinas da sociedade catholico-feudal, submettendo as doutrinas revolucionarias ao egoismo individualista, agonisa actualmente em decomposição espontanea. Os abusos provenientes da sua propria organização subvertem-n’a. A crise moral, caracteristica de todas as épochas de dissolução, manifesta-se no seu maior auge pela fraqueza dos caracteres, pela venalidade das consciencias, pelas torpezas de toda ordem que mancham muitos homens em evidencia, pela indifferença ou desprezo com que a maioria do publico encara os negocios do Estado e pelo utilitarismo egoista que inspira hoje quasi todos os actos humanos.
Mas a crise moral, a dissolução dos costumes publicos e privados, que caracterisa sempre os fins dos periodos historicos, é, em geral, acompanhada logo de um comêço de reacção que se manifesta no riso, na sátira, na ironia pungente, isto é, no castigo pelo ridiculo. Este comêço de reacção moral não corrige os costumes, mas pode ter consequencias salutares por apressar a decomposição espontanea e facilitar com as suas irreverencias o advento das novas doutrinas.

Quando a grandeza dos Romanos se submergiu nas orgias do imperio, Juvenal fustigou com as suas sátiras a sociedade em decadencia. Com ellas contribuiu inconscientemente para dispôr os espiritos descrentes do polytheismo á acceitação da moral christã.

No declinar do periodo catholico-feudal, quando a alma cavalheiresca foi tocada pela corrupção, Rabelais com o seu prodigioso _Gargantua_ e Cervantes com o seu immortal _Don Quixote_ castigaram pelo riso e pelo ridiculo os costumes dissolutos da épocha e prepararam o inicio dos tempos modernos.
A França, cabeça da civilisação Occidental, sentia o agonisar de um largo periodo historico sob as magnificencias do rei-Sol; á devassidão da côrte correspondia a miseria crescente do povo Voltaire com a sua fina ironia ateava o incendio que depois se chamou revolução. Beaumarchais lançou-lhe os ultimos combustiveis.

Mais tarde ainda, em França, a bacchanal do segundo imperio que cahiu humilhado em Sedan, encontrou a sátira dilacerante de Victor Hugo, a audacia firme de Rochefort e, sobretudo, a irreverente musica de Offenback.

Em Portugal a dissolução dos costumes publicos e privados, instigada desde 1852 pela corrupção adoptada como norma do governo, encontrou tambem a reacção do riso, do sarcasmo, do ridiculo. Durante o reinado de D. Luiz não faltaram as folhas satiricas, os pamphletos virulentos em prosa ou verso, as revistas do anno em que os homens e as cousas publicas eram cruamente achincalhados, as caricaturas com as quaes o talento do artista fixava em dois traços na memoria do povo as feições dos caricaturados, sempre em situações comicas ou burlescas. A acção dissolvente attingiu taes proporções que, ao terminar o reinado, se ergueu em grande parte da imprensa um brado energico contra a brandura dos nossos costumes.

Depois da ascenção ao throno do sr. D. Carlos, pretendeu o poder executivo reprimir com violencia a mordacidade iconoclasta, tanto do jornalismo como do theatro; e, com effeito, conseguiu cohibir alguns desmandos de linguagem ou de nudez de copia; mas o que não pôde abafar foi o espirito de reacção pelo riso, que proseguiu na sua tarefa demolidora, apontando ao publico os ridiculos da nossa épocha de decadencia e de desmoralisação. Basta citar o extraordinario poema satirico de Guerra Junqueiro–_Patria_.

Mas a decadencia, a desmoralisação lavra tão fundo que a reacção pelo riso encontrou espontaneamente novas formas para se manifestar. Como se a obra dissolvente dos artistas, dos escriptores e dos jornalistas já não bastasse para reagir contra a corrupção geral que procura occultar-se sob vãs ostentações de fôrça, surgem manifestações collectivas na praça publica.

O caso, occorrido em maio de 1895, dos estudantes da Eschola-Medica de Lisboa, parodiando, com o concurso da mocidade academica de outras escholas, um acto celebrado, dias antes, pelos poderes constituidos, é altamente caracteristico. A sua significação não pode ser alterada, e é realmente muito séria sob as suas apparencias folgazãs, sobretudo por ser uma manifestação da classe academica, isto é, dos homens que hão de ser amanhã parte integrante do nosso meio dirigente. São elles, os homens do futuro, que protestam pelo riso contra a dissolução que mina a sociedade portugueza.

VI

Se das classes dirigentes, da sociedade capitalista, voltamos os olhos para a grande massa da população, formada pelas classes trabalhadoras, o que vêmos?

A concomitancia da crise nacional que data de 1890, com a crise geral contemporanea que ha mais tempo se faz sentir em todos os paizes da Europa e da America, com maior ou menor intensidade, tem tornado de dia para dia mais difficil a situação do nosso operariado, tanto das cidades como dos campos.

A diminuição dos dias de trabalho para os operarios das fabricas e das officinas, a completa falta de trabalho para muitos dos operarios das construcções civis, e o abaixamento dos salarios como consequencia da abundancia de braços disponiveis para o trabalho, foram os primeiros effeitos naturaes do mal-estar economico de que padeçe a nossa sociedade. A repercussão d’esses effeitos, tornados por seu turno causas, produziu o augmento da miseria publica, e correlativamente provocou o desenvolvimento da mendicidade, da criminalidade, dos suicidios, da mortalidade em geral, das doenças e da emigração. Não foram publicados ainda os dados estatisticos dos phenomenos sociaes posteriores ao anno de 1890, e por isso não podemos corroborar com a demonstração incontestavel dos numeros, a intima concordancia d’aquellas várias manifestações da vida social com a marcha persistente da nossa grande crise.

N’estes ultimos tempos, por vezes, os factores de ordem cosmica, sobrepondo-se aos de ordem social, aggravaram ainda a situação do operariado. Referimo-nos ás vigorosas invernias e á prolongada estiagem que alternadamente açoutaram todo o nosso paiz, multiplicando a miseria publica e extendendo-a á população dos campos e á classe piscatoria. A extrema complexidade dos phenomenos sociaes faz tambem refluir sobre o operariado das cidades as consequencias d’esses males pela carestia das subsistencias. A fome que visita os trabalhadores agricolas, victimas da esterilidade quer dos campos alagados, quer das terriveis seccas, e os pobres pescadores, que em razão de ininterruptos temporaes não podem sahir ao mar no exercicio da sua profissão, tão incerta como arriscada, assenta ao mesmo tempo arraiaes nas habitações dos operarios urbanos.

É uma lei economica a correlação entre a baixa dos salarios, devida á excessiva offerta de braços, e a depreciação geral das mercadorias. Mas, nos casos a que nos referimos, nota-se uma excepção, especialmente quanto aos generos de primeira necessidade, e essa excepção ainda é mais perniciosa para o operariado. A baixa dos salarios coincide com a alta dos preços das substancias alimenticias. Esta coincidencia anormal resulta de que a alta dos preços é motivada pela falta de generos de primeira necessidade, isto é, a lei economica foi alterada pela intervenção de um factor extranho, de ordem cosmica. Todas as classes sociaes soffrem as consequencias d’essa alteração, mas o operariado mais do que nenhuma outra.

A crise do trabalho tem, por várias vezes, n’estes ultimos annos, obrigado o poder executivo a abrir obras extraordinarias. É um palliativo que attenua, mas não resolve a crise. E se allivia por instantes a crise operaria, aggrava a situação do Thesouro. As finanças publicas peoram com o peso de novos encargos. Mas acceitando o facto como uma imposição de ordem social, em vez de inventar obras para dar que fazer aos operarios sem trabalho, seria preferivel que o Governo tivesse sempre de reserva, para mandar executar, um plano de obras necessarias, mas não urgentes, afim de fornecer trabalho nos periodos mais agudos e depressivos da crise operaria. Foi pelo menos o que em Inglaterra recommendou ás auctoridades publicas a maioria d’uma commissão real de inquerito ao trabalho nomeada em 1891.
Em Portugal, com o fim de dar trabalho aos operarios desoccupados, malbaratam-se infelizmente todos os annos consideraveis sommas de dinheiro, em reparos inuteis e modificações desnecessarias, mandadas fazer em edificios do Estado.

A situação do operariado, de dia para dia mais aggravada, ha de forçar o poder executivo a lançar mão, cada vez com mais frequencia e em maior escala, d’esse expediente contrario aos interesses do Thesouro.

Seria de boa administração publica utilisar, ao menos, convenientemente o trabalho dos operarios que recorrem ao auxilio do Governo.

O poder executivo, assim como não cuida, ao vêr-se obrigado pela fôrça das circumstancias a conceder trabalho aos operarios desoccupados, de aproveitar da forma mais vantajosa para o Estado o supplemento de salarios que tem de dispender, tambem não pensa em melhorar as condições do operariado em geral pelo estabelecimento de instituições protectoras.

Na Inglaterra, na Allemanha, na Austria, na França, na Belgica e n’outros paizes, os governos encaram a sério a situação do operariado. Na primeira d’aquellas nações, por exemplo, merecem tanto interesse as questões operarias que a commissão real de inquerito ao trabalho, a que já alludimos, apresentou ao Governo um relatorio official que abrange mais de 65 _livros azues_, e gastou nas suas investigações e estudos a somma gigantesca de 50:000 libras esterlinas. Esta commissão tinha por fim “inquirir das questões que dizem respeito ás relações entre patrões e operarios; das collisões entre patrões e entre operarios; das condições do trabalho que surgiram no Reino-Unido durante as recentes contestações operarias; e examinar se a legislação pode ser empregada com vantagem em remedíar os males que o inquerito conseguir descobrir, e, n’este caso, indicar os meios.”

N’este momento historico, quando em Portugal as classes trabalhadoras atravessam uma crise angustiosa, de caracter permanente, resultante de várias causas que mutuamente se aggravam, quando a miseria se alastra das cidades aos campos e ás aldeias, quando a fome ruge por vezes ameaçadora e sinistra, urge prestar cuidadosa attenção ás questões sociaes e diligenciar estabelecer em beneficio do proletariado leis protectoras e previdentes, destinadas a facilitar e fomentar os seus melhoramentos materiaes, moraes e intellectuaes.

A crise economica que o mundo civilisado atravessa, tem tomado cada vez mais o caracter de crise social. É preciso não esquecer este facto, symptoma evidente da decomposição do regimen capitalista, pois que a actual situação do operariado entre nós é fundamentalmente uma manifestação d’essa crise, aggravada sem duvida por factores de várias ordens, mas não uma simples consequencia d’estes.

VII

Um dos pródromos caracteristicos da dissolução espontanea do regimen capitalista-industrial que se implantou sobre as ruinas do velho regimen, chegando a organisar-se n’uma especie de feudalismo do dinheiro, é a tendencia cada vez mais forte para a diminuição do juro do capital.

A abundancia e a generalisação da riqueza accumulada em virtude das condições de trabalho creadas pelo salariado e pelo desenvolvimento do machinismo, trouxe a concorrencia dos capitaes disponiveis e, como natural consequencia, o barateamento do dinheiro.

A menor retribuição dos capitaes ou a desvalorisação d’elles á medida que augmentam as riquezas improductivas e demandando collocação, deixa-nos antever a espontanea decadencia e futura queda do regimen capitalista. A transformação social, preconisada pelas doutrinas socialistas, opera-se assim simplesmente pela ordem natural das cousas.

Não admira. A passagem de um regimem para outro ou de um grau de civilisação para o immediato obedece sempre a leis historicas. Uma sociedade em dissolução contém em si os germens, mais ou menos desenvolvidos, da que se lhe segue evolutivamente. É por isso que nos ultimos dias do imperio romano, nas vesperas da invasão dos barbaros, já se via germinar o feudalismo, que não foi obra exclusiva dos vencedores, ao contrario do que muitos crêem.

A diminuição da taxa do juro não se observa, porém, em toda parte, apesar de ser geral a dissolução espontanea do regimen. Por exemplo, no nosso paiz. Mas tambem em Portugal, assim como o feudalismo medievico não se fez sentir com a intensidade que teve no centro da Europa,–a ponto de levar Herculano a negar que elle existisse entre nós,–do mesmo modo o novo feudalismo, o do capital, nunca se manifestou na sociedade portugueza senão extremamente attenuado, não se fundando a grande industria, a não ser excepcionalmente, e não havendo as desegualdades de fortuna tão accentuadas que se vêem n’outros paizes.

O juro em Portugal mantem-se alto; a taxa do desconto no Banco de Portugal, actualmente de 5 1/2 por cento,(Novembro de 1897.) tem sido normalmente de 6 por cento, nunca descendo abaixo de 5; para a industria não se obtem dinheiro senão acima de 6 por cento; e para a agricultura, em geral, a 10 e mais por cento. A razão d’esta alta permanente do juro é principalmente a concorrencia desastrosa que os governos desde 1851 sempre fizeram ao commercio, á industria e á agricultura, levantando emprestimos a trôco de um juro attrahente e largamente remunerador. Rendimento de facil recepção e bem garantido, na opinião do vulgo, era preferido por todos que dispunham de alguns capitaes e que tinham por ideal uma vida tranquilla sem canceiras e sem cuidados. Entretanto, privadas de capitaes, que só obtinham com juro exorbitante, a agricultura definhava e a industria difficilmente luctava para viver.

Se em Portugal, pela razão apontada, se mantem alta a taxa do juro, não succede o mesmo nos paizes onde teve o maior desenvolvimento o regimen capitalista-industrial. Nos bancos de França e de Inglaterra a taxa do desconto tem descido a 3 e a menos por cento; e a industria e a agricultura em França e em Inglaterra, sem grandes attrictos, levantam capitaes a juro modico.

Em França, especialmente, superabunda hoje o dinheiro, fructo não só do excesso de exploração do salariado e dos machinismos aperfeiçoados, como do surprehendente espirito de economia que domina as classes laboriosas. Resultou d’esta accumulação, cada vez maior, de capitaes em disponibilidade, á cata de collocação, o gradual abaixamento da taxa do juro.

Esta depreciação de capitaes, devida á abundancia e á natural concorrencia que a acompanha, deu origem a uma proposta de lei que a camara dos deputados franceza votou, ha poucos dias,(Em 25 de novembro de 1897.) depois de primeira leitura, e que, apesar da sua concisão, representa, se fôr definitivamente approvada, o inicio de uma _revolução economica_, na phrase do jornal conservador _Le Temps_.

É a fixação da taxa do juro legal em 3 por cento em materia civil e em 4 por cento em materia commercial, ficando abrogadas as disposições contrarias da lei de 3 de setembro de 1807, ainda hoje em vigor. Esta lei lixava em 5 por cento o juro legal em materia civil e em 6 por cento em materia commercial. A reducção proposta anda por 40 por cento em materia civil e por 33 1/2 por cento, pouco mais ou menos, em materia commercial.

O projecto de lei fixando a taxa de juro, que está submettido á approvação do parlamento francez, tem evidentemente por fim pôr de accôrdo a legislação com a evolução economica da sociedade. O abaixamento da taxa do juro é um phenomeno economico produzido, como dissémos, pela superabundancia de capitaes.

Sendo esta uma consequencia das condições de trabalho no regimen capitalista e ao mesmo tempo um factor de dissolução d’esse mesmo regimen, não pode ser considerado um phenomeno passageiro, mas sim um phenomeno que cada vez ha de accentuar-se mais. A evolução da taxa do juro torna necessaria a modificação da lei que lhe diz respeito.

É significativa a apresentação á camara franceza do projecto de lei reduzindo a taxa do juro. Representa o reconhecimento official d’esse importante phenomeno economico. Mas a sua existencia não carecia decerto d’essa prova. A verdade é que o movimento descendente que se produz na taxa do juro se tornou indiscutivel; confessam-n’o os proprios conservadores. E _Le Temps_,(De 27 de novembro de 1897.) que não pode ser suspeito de sympathia pelas doutrinas socialistas, diz, a proposito d’este movimento indiscutivel, que o _laisser faire et laisser passer_ dos economistas tem afinal consequencias que se approximam das theorias sociaes dos collectivistas, sem todavia com ellas se confundirem.

VIII

O regimen economico contemporaneo, especie de feudalismo industrial e capitalista, caracterisado pela exploração do trabalho e concentração dos capitaes, está em plena phase de dissolução. A crise economica que resulta d’esta ordem de cousas e que se manifesta cada vez mais profunda, tem dado a proeminencia á questão social sobre a questão politica, mas a resolução d’esta, apesar de secundaria em importancia, não deixa de ser uma condição indispensavel, sobretudo entre os povos occidentaes da Europa, para a plena solução d’aquella. Sem instituições democraticas não pode fortificar-se o espirito das verdadeiras reformas sociaes.

Haja vista a differença do que tem occorrido em França e em Portugal com o derramamento da instrucção publica, de facto a base essencial de todas as reformas politicas ou sociaes. Em França, depois de triumphar a terceira republica, a instrucção em todos os seus graus conseguiu adquirir um desenvolvimento perfeitamente democratico. Esse desenvolvimento trouxe a consolidação definitiva d’aquella forma de governo.

Em Portugal, a instrução popular não encontra da parte dos poderes constituidos senão obstaculos ao seu desenvolvimento; e as successivas reformas, decretadas hypocritamente com o fim annunciado de melhorar e ampliar o ensino, não teem feito mais que manter o povo systematicamente na ignorancia. Mas, se entre nós se tem mostrado na prática a incompatibilidade das instituições monarchicas com o derramamento da instrucção popular, tambem cada vez se tem accentuado mais a incompatibilidade d’essas mesmas instituições com toda a especie de reformas democraticas, quer politicas, quer sociaes. Basta ver como se executa a chamada legislação operaria que possuimos, na parte em que não ficou inteiramente lettra morta, por exemplo, a protecção ao trabalho dos menores e das mulheres nas fabricas e nas officinas e o tribunal dos arbitros-avindores de Lisboa.

Mas a corrente favoravel á solução da questão social avoluma de momento para momento e de dia para dia adquirindo por isso maior impeto em todos os paizes, sem exceptuar Portugal, porque aos esforços intelligentes e disciplinados dos operarios socialistas se juntam por toda a parte os esforços da burguezia illustrada–professores, medicos, homens de sciencia, litteratos, artistas, etc.

Em Portugal pode servir-nos de exemplo a attitude tomada nos ultimou annos da sua existencia pelo visconde de Ouguella, o qual sob o titulo de _A Questão Social_ iniciou a publicação de uma serie de opusculos chamando a attençâo dos espiritos independentes para a solução da these obrigada de todas as discussões nos centros populares. A questão social impõe-se, dizia elle, porque a revolução “está já nos espiritos e pouco falta para que se traduza em commoções energicas na vida das sociedades.” Escrevia depois o visconde de Ouguella: “O perigo está no antagonismo que se manifesta entre as bases em que assentam as instituições existentes, e os principios affirmados pela sciencia em quasi todas as provincias do saber. É esta discordia insuperavel que gera a anarchia, creando um desequilibrio tão violento nas sociedades, que só poderá terminar pelo predominio das novas doutrinas. Tanto mais que as classes illustradas clara ou occultamente acceitam as affirmações preconisadas pela sciencia.” D’aqui concluia o illustre escriptor que “a verdadeira democracia tem de hastear forçosamente o pendão do socialismo.”

Mas observa com inteira verdade, apontando o facto como o perigo mais instante, que “os dirigentes, em geral, mediocremente instruidos, não teem sequer a intuição das ameaças da hora presente, e ignoram quaes os meios de por uma transição suave e lenta oppôr diques á torrente caudal que pode submergir sociedades inteiras. Educados em um meio puramente politico, e aptos apenas para os enredos e argucias da vida parlamentar, não attentam a que os povos estão entregues a um rigoroso trabalho de gestação, que pode, em um impulso premeditado e com o esforço e accôrdo de várias nacionalidades, produzir um profundo abalo social. Levados por um falso empirismo, suppõem que uns arremedos de socialismo do Estado são a melhor forma de sanar as iras do operariado e adormecer as exigencias e reivindicações populares, deixando aliás de pé todo o existente nas suas irremediaveis e funestas contradicções.”

Já anteriormente o primoroso estylista de–_Os Salões_–publicara–_A Lucta Social_, uma obra de protesto, mas ao mesmo tempo de esperança, porque “por mais adiantada que vá a gangrena no corpo social, ainda a sua acção se não fez sentir com a mesma intensidade nas classes populares.” E d’ellas e só d’ellas–affirmava-o o visconde de Ouguella–é que ha de irromper a fé vivificante, que deve restaurar um dia este organismo denominado nação portugueza.»

No meio da desolação que semeou no espirito publico a crise politica e financeira com todas as suas desastrosas consequencias, e mais ainda a crise moral que cada vez se manifesta mais intensa, consola verificar que ha ainda quem confie no dia de amanhã, quem se não deixe arrastar na corrente do desalento e descrença, quem espere ainda uma revivescencia. Ao menos não está tudo perdido. Por maior que seja a decadencia nacional, por mais extensas que sejam as ruinas devidas á concomitancia dos erros da governação constitucional e da dissolução do regimen capitalista, emquanto resta uma esperança, ha sempre probabilidades de melhores dias.

A decadencia portugueza não é um acontecimento isolado no mundo moderno. Obra principalmente dos esbanjamentos e desvarios dos governos, relaciona-se todavia com successos identicos, e outros de ordem economica geral, occorridos n’outros paizes. Portugal constitue uma unidade como nação independente; mas á luz do moderno criterio scientifico é e foi sempre uma parcella de um organismo superior—a Civilisação Occidental. No seu viver interno sempre se repercutiram com maior ou menor extensão os grandes movimentos o as grandes idéas que explicam a historia dos tempos modernos.

Os males economicos e sociaes são os mesmos, á parte a intensidade, em todos os povos contemporaneos. Os desastres financeiros e as revoltas politicas, embora circumscriptas nas suas origens materiaes e nos seus effeitos immediatos, á situação particular de cada paiz, derivam tambem, em ultima analyse, de correntes universaes de opinião. Por exemplo, os _deficits_ com que se fecham as contas do Thesouro em quasi todos os paizes civilisados são a consequencia da manutenção geral dos exercitos permanentes, do continuo desenvolvimento dos orçamentos de guerra e marinha e ainda da febre extraordinaria de melhoramentos materiaes, na maioria dos casos com intuitos estrategicos.

“Estamos assistindo ao desmoronamento de instituições existentes, atravessamos uma tardia e afflictiva transformação social, e caminhamos immediatamente para o encerramento definitivo de um cyclo historico já agonisante” dizia com razão o visconde de Ouguella no seu livro–_A Lucta Social_, e pintava assim este momento de metamorphose social dos povos:

“Na hora presente, os mais pronunciados symptomas, que em toda a Europa se observam nas classes superiores, exprimem a vertiginosa perturbação de todas as crenças, a avidez insaciavel de conseguir desvairados gosos, por mais cynicos e injustificaveis que sejam os meios, a completa perversão dos costumes, devida em grande parte á carencia de generosos ideaes a cubiça desmesurada do ouro e dos mais torpes e nojosos lucros, e a realisação á porfia de ousadas empresas, revestidas dos maiores deslumbramentos e da mais ruidosa vaidade.

“Nem já se afivela a mascara hypocrita de uma simulada decencia byzantina, em homenagem especiosa ao decoro e ao respeito a que obriga a publicidade. Manifestam se os factos brutalmente em toda a sua desnudez, sem que os auctores se arreceiem de qualquer accusação affrontosa que os possa perseguir ou macular.”

A decomposição a que assistimos coincide individualmente com um estado de duvida e de incerteza, com uma disposição da alma, observada por Max Nordau, em que se mistura a agitação febril ao desánimo incomprehensivel, e politicamente ao descredito e á desaggregação progressiva dos partidos pelo triumpho que alcançam as ambições individuaes. Em França, na Italia e na Belgica o proprio radicalismo não tem escapado á acção decomponente.

Ergue-se, porém, por toda parte, adquirindo de dia para dia maior desenvolvimento, a democracia social que aqui e além já começou a impôr-se, não só como elemento de transformação politica e de remodelação partidaria, mas, sobretudo, como factor da reorganisação economica, financeira e moral do mundo contemporaneo. Pertence-lhe, como já notou Magalhães Lima, outro apostolo dos ideaes modernos, no prefacio do seu livro–_A Obra Internacional_, a cohesão de esforços dentro dos limites extremamente amplos dos problemas sociaes, que teem hoje justificada primazia sobre todos os outros, visto que o empirismo politico já deu de si as mais tristes provas como fomentador da desmoralisação geral e da perversão dos caracteres. Da lucta social ha de nascer um novo regimen, assim como das “revoluções appellidadas desvairadamente democraticas”–na expressão do visconde de Ouguella,–proveiu a preponderancia da burguezia, a implantação do systema constitucional.

Antes de triumphar em Portugal o governo absoluto, os monarchas tinham tal consideração pelas justas exigencias dos ruões, lavradores e mesteiraes, dispensavam tal attenção aos razoaveis reparos que elles lhes faziam, que nunca se esquivavam a responder e faziam-n’o sem subterfugios, ao contrario, como observou o visconde de Ouguella, do que “hoje é de uso nos governos parlamentares, para afastar a opinião publica dos negocios em si escuros, e de nenhum modo acceitaveis.”

A lucta social que acompanha a dissolução do regimen capitalista, é a continuação do movimento que produziu o engrandecimento e preponderancia da classe média, pela extensão das conquistas do terceiro estado ao quarto estado, isto é, ao proletariado. Este perdeu, em vez de ganhar, com o constitucionalismo, porque “espoliaram os mesteres de uma das suas mais valiosas e mais disputadas franquias: o direito de ter representação sua propria no governo dos municipios.” Foi n’isto principalmente, disse o auctor da _Lucta Social_, “onde mais se revelou o egoismo da classe média, que então já violentamente imperava, foi no esquecimento em que deixou as classes operarias sem representação na administração financeira e economica dos concelhos, e conseguintemente sem influencia nem acção propria nas localidades.”

O visconde de Ouguella, cujo lucido espirito estava educado nos principios das sciencias modernas, cria na lei historica da evolução, o por isso affirmava que a transformação social se opera inevitavelmente, sendo a derrocada do systema actual impreterivel e fatal. Dizia: “Sempre que as monarchias se encontrarem isoladas sobre um solo nivelado já pela democracia, e sem que se possam escorar em alguma poderosa classe social, hão de fatalmente desapparecer, e mais facil será a sua extincção, se ellas não corresponderem a nenhuma das necessidades dos povos modernos, nem satistizerem as suas imperiosas reclamações.” Referia-se n’estas palavras á solução das questões sociaes.

A cohesão de esforços do proletariado no campo d’estas questões não é senão uma consequencia ou um complemento inevitavel da obra internacional no terreno das idéas scientificas e das suas applicações á vida prática. Magalhães Lima já tocou este problema no seu livro _A Obra Internacional_.

Disse elle: “Tudo o que é moderno, vivo, progressivo é hoje internacional. O Commercio e a Industria são essencialmente cosmopolitas. São-no egualmente a navegação, os caminhos de ferro, o teléphono e todas as grandes descobertas que constituem a gloria do nosso seculo. O futuro pertence ao cosmopolitismo, disse Littré.

“A Sciencia e a Arte são profundamente internacionaes. As descobertas de uma e as creações de outra a todos aproveitam, e os seus progressos podem e devem considerar se como a mais alta expressão do internacionalismo. As idéas não teem patria e pode dizer-se que ellas constituem um verdadeiro patrimonio da humanidade.”

O internacionalismo nas idéas scientificas e nas suas applicações industriaes patenteia-se desde muito na frequente reunião de congressos internacionaes para a discussão quer de theorias puras, quer de problemas praticos de hygiene e saude publica, de criminologia, de serviços postaes e telegraphicos, de caminhos de ferro, de assumptos monetarios, etc. Os congressos democraticos internacionaes para a solução das questões de ordem social obedecem simplesmente á mesma tendencia.

Demonstra Magalhães Lima no interessante livro que temos citado, que é “no dominio do pensamento que o internacionalismo se affirma com a maior intensidade”, e conclue que “este facto de per si só bastaria para provar que o futuro lhe pertence.” A tendencia para o cosmopolitismo não é nova; existiu já a solidariedade dos pensadores na primeira expansão da Renascença, e mais accentuada ainda no seculo passado, na obra dos encyclopedistas. Não tem cessado de progredir com as conquistas e descobertas scientificas e industriaes do nosso seculo, manifestando-se primeiro nos congressos internacionaes de sciencia e de melhoramentos industriaes d’ella derivados, e depois nos congressos destinados á discussão dos interesses de ordem moral e social, nomeadamente os feministas, os socialistas e os da paz e arbitragem.

O remedio indispensavel para a grande crise economica, social e moral que se revela em todos os paizes, e que dá logar á profunda e gradual decomposição dos elementos constituintes das sociedades contemporaneas, tem de ser de caracter internacional e de actuar ao mesmo tempo sobre a constituição da familia, sobre a organisação das sociedades e sobre as relações de amizade e de ligação entre todos os povos. Os problemas da situação da mulher, das condições do operariado e da paz geral estão intimamente ligados entre si; e a solução de todos elles depende da transformação radical das sociedades contemporaneas, já hoje em adeantado estado de decomposição. Diz Magalhães Lima que _se trata de um movimento renovador dos mais importantes na historia da humanidade, e define-o assim na Obra Internacional_:

“No ponto de vista da familia, no ponto de vista da sociedade, assim como no ponto de vista das nações, a reorganisação da humanidade deve repousar sobre novas bases economicas.

“É preciso não sómente assegurar a paz e a harmonia da familia, senão tambem a sua independencia.
“Por isso pedimos a egualdade dos sexos.
“É mistér reorganisar a sociedade tornando os interesses solidarios.
“Por isso sustentamos as reivindicações do proletariado.
“É indispensavel emancipar as nacionalidades.
“Por isso queremos a federação universal.”

Tambem o visconde de Ouguella proclamava a politica da federação como o labor vivificante das nações transformadas socialmente pelo advento do quarto estado á vida politica. Dizia elle: “O verdadeiro equilibrio europeu só poderá estabelecer-se e consolidar-se por meio da federação dos povos, e a corrente das idéas parece demonstrar que é a toda a familia latina que caberão as primicias d’essa gloriosa missão.”

Sem dúvida, para quem observar attentamente o que se passa no mundo contemporaneo, é essa a orientação a que obedece o actual movimento renovador, que, como obra internacional, se contrapõe á dissolução do regimen capitalista, cada vez mais extensa e intensa em todas as nações civilisadas.