CANTOS SAGRADOS  
de Manuel de Arriaga


LIVRO PRIMEIRO

DEUS E A ALMA

I

O QUE EU VI

Sahi um dia a contemplar o mundo,
Por vêr quanto ha de bello e quanto brilha
Na multipla e gloriosa maravilha,
Que anda suspensa em o azul profundo!

Vi montes, vales, arvores e flôres,
Limpidas aguas, múrmuras torrentes,
Do grande mar as musicas plangentes,
Dos céus sem fim os trémulos fulgôres!

Trouxe os olhos tão ricos de belleza,
O coração tão cheio de harmonia,
De quanto havia em terra, mar e céos,

Que interpretando a sós a Natureza:
Dentro de mim esplendido fulgia,
N’um circulo de luz, teu nome, oh Deus!

II

MUNDO INTERIOR

 Materia ou Força, Lei ou Divindade
Quem quer que seja que dirige o mundo,
Esparze em tudo o espirito fecundo
Do Summo Bem–Belleza, Amôr, Verdade.

Á luz d’esta Santissima Trindade,
Cercado d’esplendor, clamo e jucundo,
Sorri-me em volta o universo; ao fundo,
Por synthese Suprema, a Humanidade!

 Dos homens rujam temporaes medonhos…
Que em mim, no meu labôr, do Bem sedento,
Meus dias correm limpidos, risonhos!

Estrellas que brilhaes no firmamento!
É menos bella a vossa luz que os sonhos
Que gera na minha alma o Pensamento!

III

TRISTEZA

Como isto cá por fóra é tudo alegre!
Quão bello o sol! que esplendida harmonia
A terra, o mar e os céos!
Porem dentro de mim que mundo á parte!
Que embate de paixões! Que noite funebre!
Que magoas, Santo Deus!

Ai! se as manchas que o sol no rosto esconde
Tem sobre o mundo alguem onde projectem
A triste escuridão,
Minha alma é como o espelho onde ellas caem,
Tão profunda é a mágoa que me lavra
Aqui no coração!

E eu via ha pouco o azul d’um céo sem macula!
E o sol d’esta alma fulgurante e limpido
Banha-me todo em luz!
Porém, franqueza humana! eu proprio o obrigo
A alumiar-me com a luz da frouxa lampada
D’um templo de Jesus!…

Senhor! Senhor! que um teu olhar me alegre!
Que lave o pavimento de meu peito
De muita ideia vã,
Que o mal é como a noite, e o sol apaga-a
E transforma-a na prata, ouro e purpura
Das nuvens da manhã!

Oh! tu tristeza, irmã dos desgraçados,
Que lanças no meu peito os ais plangentes
D’esses gemidos teus!
Desprende da minha alma as azas negras,
E deixa entrar alegre a luz do dia,
A luz vinda dos céos!

E vós, filhos do sol, tribus innumeras
Da familia de Deus, plantas e flôres
Insectos e animaes,
Que engolfados nos gozos do Universo,
N’esse concerto immenso de harmonias,
Nos céos a Deus louvaes:

Ah! venho-vos tomar por meus mentores,
Pois vale bem mais a luz do vosso instincto,
Que a luz d’esta razão,
Se eu não sei como vós viver contente,
Trazer o azul dos céos na consciencia,
E a paz no coração!

Lisboa

Na tapada d’Ajuda,

1869

IV

PRESENTIMENTOS

      Eu bem sei que devia
Causar-te muito dó,
Em noite tão sombria
Vêres-me aqui tão só!…

      Nem sei que sol m’alegra!
A sós com a minha cruz,
Sou como a nuvem negra
Que encerra muita luz!…

      Como arvore sombria
Vergada sobre um val,
Assim vivo hoje em dia
Á sombra do Ideal…

      Que eu tenho muita fome
De Justiça e d’Amor,
E aqui não ha quem tome
A serio a minha dôr…

      O mundo vê e passa,
Como sempre passou,
Sorrindo da desgraça
Dos tristes como eu sou…

      E este sonho dourado
D’amôr, que a gente vê,
Não póde estar guardado
N’esses homens sem fé!…

      Ah! não! já não m’illudo
Foi isso o que suppuz;
Mas vi mudar-se em tudo
Em sombra a minha luz…

      E os sonhos que já tive
Tão bellos, afinal,
São hoje um céo que vive
Sobre este lamaçal!…

      Um céo que vejo, ao longe,
Exposto aos olhos meus,
Co’a mágoa com que um monge
Veria outr’ora a Deus!…

      E onde ha maior castigo,
Mais dura provação,
Que ter por inimigo
O homem nosso irmão,

      Aquelle a quem nós démos,
Com toda a candidez,
Os sonhos que hoje vêmos
Desfeitos a seus pés?!…

      Ah! suppõe-me o desgosto,
De eu vêr desparecer
A cópia do meu rosto
Aos pés d’uma mulher,

      E isto em desacato
Do meu mais santo amor:
E ahi tens um retrato
Da minha immensa dôr,

      Quando vejo desfeito
Por gente ingrata e má
Um sonho do meu peito,
E muitos vi eu já!…

      Por isso eu n’esta vida,
Apoz tanta illusão,
E tanta flôr perdida,
Tanta corôa no chão…

      Ai! sinto com o anceio,
Que é proprio do infeliz,
Um mal n’este meu seio
Lançar muita raiz!…

      Espero vêr a morte,
Eu proprio a invoquei,
Levar-me d’esta sorte
Para onde?! É que eu não sei!…

      Como eu não sei dizer-te,
E isto que me consol’,
Como é que se converte
Em vida a luz do sol!…

      Como nasce a ventura
Do homem que morreu,
Dormir na sepultura
Para acordar no céo!…

      Aqui tudo é mysterio!…
Mas visto que assim é,
Onde ha melhor criterio
Que á luz da nossa fé?

      E eu creio firmemente
Que o martyr de Jesus,
Não fica só pendente
Dos braços d’uma cruz…

      Que o homem que prosegue
A luz d’um Ideal;
Embora a turba o pregue
Na sua cruz fatal…

      O céo é bem profundo,
O fundo nem tu vês,
E ha n’elle muito mundo,
Para onde irá talvez!…

      A vida continúa,
E a alma, emquanto a mim,
Avança e não recúa
Por esses sóes sem fim!

      Do sol se um raio ardente
No mar vier cahir,
Em nuvem transparente
Nós vêmol-o subir!

      Não ha suster-lhe o rumo
Que o leva para os céos,
E assim é que eu presumo
Voarmos nós a Deus!…

      O ponto é merecel-o,
Que Deus é justo e pae,
E eu sei com que desvelo
A si os bons attrae!

      Mas quando eu vejo a lua,
Não sei que ideia má
N’esta alma me insinua
A luz que n’ella ha!…

      Emquanto em torno d’ella,
Ao norte, ao leste, ao sul,
Refulge tanta estrella
Pela amplidão do azul,

      Tu vêl-a solitaria,
Em paz cruzando o céo,
Como urna funeraria
D’um mundo que morreu!.

      Ali já não ha vida!…
Ali não ha calor!…
N’aquella luz, vertida
Em lagrimas de dôr,

      Ha só tristeza e lucto,
E confrange-se e doe
O coração, se escuto
Mulher, porque isso foi!…

      Ah, tenho medo
Que o Supremo Juiz
Nos julgue assim tão cedo!…
Não sei que voz m’o diz…

      Não sei… mas, se contemplo
Os crimes que ahi vão,
Mulher, aquelle exemplo
Conturba o coração!…

      E assim só n’outra parte
Verão os olhos meus
Os sonhos que reparte
Commigo a mão de Deus!…

      O mundo onde abre o cardo
E o lyrio ao mesmo sol;
Onde ama o leopardo
A par do rouxinol;

      Que tem de andar na sombra
Para viver na luz;
E, o que inda mais m’assombra,
Onde ha Nero e Jesus:

      Por mais bello e risonho
Que seja, ainda assim
Não vale qualquer sonho,
Que trago dentro em mim!…

      Isto é um fraco esboço
D’uma outra vida e crê,
Que sinto-a, mas não posso
Dizer-te onde ella é!…

      Se a Vida em nós começa,
Por esses sóes d’além,
Sobre a nossa cabeça.
Trabalha-se tambem!…

      Mulher! mulher! quem sabe
Se é isto o que m’attrae
Aos céos, pois, tanto cabe
A Deus, que é justo e pae…

Lisboa, 1870.

V

CONSCIENCIA

      Para um homem que aspira
Ao ideal da Belleza,
Não ha maior tristeza,
Magua maior não ha,
Que vêr escurecer-se-lhe
O ceu da noite escura
D’alguma ideia impura,
D’alguma paixão má!

      Paixão que muitas vezes
A luz da nossa Ideia
Accende, inflama, atêa,
E depois nos attrae
Com tanto magnetismo,
Com tal encantamento,
Que o homem n’um momento
Vacilla, cega e cae!…

      Cae, sim, do seio esplendido
Do mundo onde vivia
Na mais doce harmonia
Em paz co’os dias seus,
Para apagada a febre
Do seu fugaz delirio,
Achar-se co’o martyrio
De te perder oh! Deus!

      Sem Ti, meu pae, que assombro!
Que noite tão completa!
Que acerba dôr me inquieta
Meu fragil coração!…
Voltar a vêr a alma
D’esperanças povoada,
E achal’a transformada
Em lugubre soidão!

      Senhor! se desabassem
Á tua vóz as bellas
E limpidas estrellas
Dos ceus que não teem fim,
Eu creio que assombrado
Do horrendo cataclysmo,
O Sol, d’além do abysmo,
Seria egual a mim!

      Eu lembraria a aguia,
Que a prole ainda implume
Deixando sobre o cume
De monte erguido ao ceu,
A fosse achar de subito
Na rocha alcantilada,
No ninho, fulminada
D’um raio que desceu!

      Egual seria o quadro
Da minha consciencia,
Ao ver a tua ausencia
Fazer-se em mim, Senhor!
Que em volta do teu astro
Minha alma de poeta
É pallido planeta
Buscando o teu amor!

      E eu sem ti nem vivo!…
Tu és, oh, doce esperança,
O seio onde descança
Meu ser e afinal
Não sei até dizer-te
O quanto soffreria,
Se vira extincto um dia
Em mim, teu Ideal!

      Oh não mil vezes antes
Em carcere ermo e escuro,
Achar-me de futuro
A sós c’a minha dôr;
Extincta a luz dos olhos,
E as bellezas do mundo,
E o ceu azul profundo
Com todo o seu fulgor!

      Tu crê que nem demandam
Os mundos inferiores
Fócos de luz maiores,
Por esse infindo azul,
Como eu o eterno centro
Das leis da natureza,
Do _Amor_, e da _Belleza_,
Que são meu norte e sul!

      Oh Pae! se n’algum dia,
Eu vir, n’uma miragem,
Alguma falsa imagem
Do Bem prender-me aqui:
Desvenda a tua face,
E mostra-me o teu seio,
Que, mesmo embora em meio
Do abysmo, irei a ti!

      Irei, tão instinctivo,
Tão amoroso e firme,
Eu sinto a attrair-me
A ti o teu poder,
Que eu vejo em ti o Norte,
Para onde se encaminha
A pura essencia minha,
Que sente, pensa e quer!

      Irei vencendo, indomito,
Innumeros attrictos,
E escolhos infinitos,
E infindos escarceus,
Como essa vaga enorme
Do mar que não recua,
Seguindo sempre a lua
Que vê passar nos ceus!

      Irei bem como a Terra
Seguindo eternamente
O rumo do oriente
A demandar a luz;
Bem como Jesus Christo
O rumo solitario
Da senda do calvario
Á busca d’uma cruz!

      Irei cá d’este mundo
Onde tu me cedeste
A dadiva celeste
Da Rasão e do Amor:
Raios vitaes que mudam
Em luz a nossa essencia,
E a luz em Consciencia,
E esta em ti, Senhor!

Lisboa, 1869.

VI

REVELLAÇÃO

O LAGO

      Scismava um dia na cruel sentença
Com que a Egreja fulmina a raça humana,
Deixando impura a fonte d’onde emana
O sangue que me anima, e a alma que pensa:

      E ao passarem no ceu do meu destino
As nuvens da tristeza e da saudade,
Revellou-me o Senhor alta verdade,
Junto ás margens d’um lago crystalino!

      Isto foi pelo mez do abrir das flôres,
Quando a vida celebra os seus noivados,
E o mundo, sob os verdes cortinados,
Parece um doce thalamo d’amores!

      Estava um dia esplendido! a animal-o
Eu via o seio azul do ceu mais lindo
Curvar-se sobre mim, ethereo, infindo
E tepido: era um gosto enamoral-o!

      Como fecho da abobada infinita,
O Sol nos ceus, riquissimo objecto,
Com barras d’ouro irradiava o tecto
Do vasto pavilhão que o mundo habita!

      Côres variadas, fórmas differentes,
N’um conjuncto de graças sem egual,
Debuxavam-se ali ao natural
Sobre o crystal das ondas transparentes!

      Alvas manchas d’insectos pequeninos,
Envolvendo-se em giros caprichosos,
Como tríbus de povos venturosos,
Fruiam junto ao lago os seus destinos!

      Pelas balsas cantava a toutinegra,
E as rolas modulavam doces côros,
No ar passavam fremitos sonoros
Co’as vibrações da Luz que o mundo alegra!

      No lago, a planta, a flôr, o ceu, a terra,
Como notas d’uma unica harmonia,
Revellaram-me á plena luz do dia,
Enlevos que o prazer da vida encerra!…

      E eu via tudo, e extatico scismava:
Se por ventura a colera divina,
Segundo a Egreja ao mundo inteiro o ensina,
Do gremio dos felizes me affastava!…

      E não podendo crer, embora obscuro
Vêr-me qual sou, que esta alma de poeta,
De tanto sonho explendido replecta,
Atollada estivesse em lôdo impuro…

      Ai! quando a Deus pergunto se prendeu
N’um pó que é vil o espirito divino,
Olho o espelho do lago crystalino
E não encontro o lago: encontro o ceu!

      O mesmo que era em cima azul, immenso,
E a lampada brilhante que o alumia,
Lá no fundo do abysmo aos pés os via,
De sorte que em dois ceus era suspenso!

      E quanto se ostentava em torno ao lago,
Os muros de verdura, a flôr mimosa,
O deslisar da nuvem vaporosa,
E a voltear do insecto incerto e vago:

      Outro tanto animava, ao longe, e ao perto,
Aquella região d’azul vestida,
Onde a minha alma, em extasi embebida,
Contemplava na Terra um ceu aberto!

      E emquanto extasiado a sós fitava,
Nas bellezas do lago transparente,
Aqui uma flôr, além, para o poente,
A nuvemsinha branca que passava,…

      Eis senão quando, uma ave, porque visse
Insectos junto da agua socegada,
Desceu subtil, aerea e delicada,
E ao perpassar roçou-lhe a superficie,…

      O ponto ferido, em ondas borbulhando,
Desabrochou em curvas graciosas,
Como as folhas concentricas das rosas,
Ou lusidias cobras imitando!

      E emquanto o impulso em torno se propaga
Em circulos risonhos: n’um momento,
Toda a cupula azul do firmamento
Oscilla, treme e cae, e o Sol se apaga,

      E a arvore, e a flôr, e quanto junto á margem,
Em doce paz, seu rosto reflectia
No crystalino espelho, por magia
Da lei do amor, a doce lei da imagem!…

      Fere-me então bem intima tristeza,
Ao vêr aos pés, em sordido tumulto,
Um lymbo verde e escuro onde occulto
Estava um ceu tão rico de belleza!…

      Lembrei-me então da minha vida insana,
De quanto sonho lindo anda desfeito
Nos intimos arcanos do meu peito,
Co’o tropel das paixões da vida humana!…

      E as lagrimas cahiram-me uma a uma
Sobre esses bens que a Terra e os ceus inspiram,
E ao contacto das coisas se extinguiram
Como aereos balões feitos d’espuma!

      N’isto o Senhor, que tudo vê e ampara,
Converte-me de novo o charco immundo
N’um ceu azul infindo, e n’elle um mundo
Formoso como os bens que imaginara!…

      Scismei então por longo espaço e digo,
Que aos olhos meus por Deus fôra patente:
Que a alma humana póde, ingenua e crente,
_Vivendo em paz, um ceu trazer comsigo!_

      Ah muito embora a dôr seu peito opprima,
O espirito, que abrange o mundo inteiro,
Póde vêr, quanto justo e verdadeiro,
Nos seios d’alma os ceus que estão por cima!

      Maxima grande, maxima tamanha,
Tão repassada d’intima poesia,
Porventura d’egual sabedoria
Á predica de Christo na montanha,

      Ah! sê, por entre as sombras da desdita,
A ponte aerea, o arco d’alliança,
Que, em vez da excommunhão que a Egreja lança,
A Deus eleva a Humanidade afflicta!

Coimbra

Quinta de Santa Cruz

1871.

VII

MISSA PONTIFICAL

UM EVANGELHO

      Sahi uma manhã mal vinha o sol rompendo,
E fui-me religioso a ouvir a missa ao campo,
Á vasta cathedral do mundo, aonde aprendo
Da Vida as sacras leis, que em letras d’ouro estampo.

      Sentei-me sob um bosque estenso e solitario,
Que, em paz e sombra involto, á quietação me envida;
O accaso conduzira-me a um vasto santuario,
Onde ia celebrar-se a communhão da Vida!

      Debaixo do docel da mûrmura floresta,
Se um culto universal é justo a Deus se vote:
Estava o templo augusto armado todo em festa,
Faltando unicamente agora o sacerdote!

      O mundo em derredor aguardo-o co’anciedade…
E eil’o que chega, emfim, das bandas do oriente,
Surgindo como um Deus no azul da immensidade,
N’um carro triumphal, de raios resplendente!

      Ao vel’o perpassou nas arvores sagradas
Um sopro mysterioso, o espirito do vento,
Que deixa-nos ouvir, em musicas toadas,
Psalmos que vão morrer no azul do firmamento!…

      Nos multiplos florões das trémulas janellas,
Nos ramos mais subtis que a luz dos ceus colora,
Com magico fulgor scintillam, como estrellas,
Os limpidos crystaes das lagrimas d’aurora!

      Nas naves, que sustêm a abbobada elevada,
Penetra triumphante a luz, suprema artifice!
Interprete de Deus, celebra a sua entrada
Com pompas, do Universo o maximo pontifice!

      Assim que o sol sahio das brumas do horisonte,

      A pedra, o musgo, o insecto, a flôr, os arvoredos,
Trocaram entre si mil intimos segredos!…

      Os passaros gentis, aladas creaturas,
Soltaram festivaes Hossana nas alturas!…

      O sol triumphador, do mundo a vida accorda,
E esplendido festeja o eterno _sursum corda_!…

      Estava em plena festa a Terra, mãe querida!…
E eu, em face d’ella, a contemplar-lhe a Vida!…

      Então a Luz, qual flôr, subtil e sorridente,
Me disse a mim que sou seu terno confidente:

      Poeta! vês o mundo alegre e harmonioso;…
Em intimo convivio unido o sol á terra,
E a terra e o sol aos céus!… No enlace auspicioso,
Permutam entre si os bens que a Vida encerra!…

      A vida é sim um Bem; por isso é dada a todos!…
A todos por egual, a infindas creaturas,…
Que, em multiplo labor, e por differentes modos,
Procuram-no attingir na terra, e nas alturas!…

      Áquelle que transpõe as portas da existencia
Um vinculo d’amor protege-o logo, e fica
Ao mundo inteiro preso, em mutua dependencia,
Ah desde a larva obscura ao sol que a vivifica!..

      Qualquer que seja o nome, ou chama-lhe Verdade,
Belleza, Amor, Justiça: é tudo a mesma cousa!…
É quem fecunda e rege os soes na immensidade;
Quem dá ao universo a paz em que repousa!…

      Por isto o mundo inteiro é todo uma harmonia!…
E sente a reanimal’o uma alma alegre e sã!
E vens de longe aqui, sedento de poesia,
A namorar-me a mim, que sou a tua irmã!

      Do Sol baixei aqui a ler-te os evangelhos
Eternos de Verdade, e a missa vae findar!
Meu crente e meu poeta! é a hora: de joelhos,
Em nome do Senhor, te quero abençoar!

      Á sua voz curvando a fronte: em fé immerso,
Senti entrar-me n’alma a alma do universo!…

      Irmã, gemea de minha, a luminosa flôr,
Encerra-se afinal n’esta palavra==Amor==!

Quinta da Beselga

1885.

VIII

AVÉ CREATOR!

      Desprende pelo espaço as azas d’ouro,
Águia de Deus, no mundo extraviada!…
Pela patria celeste, a tua amada,
Vae em busca de Deus,
Cantando um hymno em honra do seu nome,
Que meu querer e instincto insaciavel
Te guiarão, qual bussola admiravel,
Pelos infindos ceus!

      Senhor! venho invocar teu nome augusto,
Em face d’estes vastos horisontes!…
Que em torno a mim o rio, a arvore, os montes,
Fallando-me de Ti,
Lançam-me n’alma um teu olhar divino,
E, com elle, um occeano de luz pura,
Que me trasborda em ondas de ventura
O que eu t’offereço aqui!

      Não sob o tecto do sombrio templo,
Que a fé christã do povo erguera outr’ora
Como um tumulo, onde o homem commemora
A tua morte, oh Pae!…
Mas sob o tecto azul do Templo Eterno,
Perante o sol que passa dando a vida
Em teu nome, que esta oração sentida
Buscar teu throno vae!

      Pois é–me triste a mim que as cousas brutas,
Ellas, sem alma, em gratidão me vençam:
E a Terra, emquanto o Sol lhe envia a bençam
Da sua eterna luz,
Converte-a em flôres, canticos e fructos,
E, n’um concerto alegre e harmonioso,
Tributa ao Sol um culto tão piedoso,
Que o peito meu seduz!

      Tu vel’a, quando o Sol lhe affasta os raios
Do seu formoso olhar durante o inverno,
A amante debulhar-se em pranto eterno,
Das gallas se despir;
Em valle e monte as folhas, com tristeza,
Dos troncos com os ventos desprendendo-se,
E o mar, co’os ceus em lucta contorcendo-se,
Raivoso aos ceus bramir!…

      Mas quando o Sol de novo a aquece e anima:
Oh que effluvios d’amôr então contemplo!…
Traz o amante a alleluia ao escuro templo,
E as trevas dão fulgôr;
Espalma a folha o ramo resequido,
E, ao som do mar que canta de mansinho,
Da terra brota a flôr, da haste o ninho,
Do ninho surge o amor!

      Seja assim o meu peito! Que a minha alma,
Buscando o foco eterno e resplendente
Do Sol dos soes, o Ser Omnipotente:
Me eleve o coração
A trasbordar torrentes de harmonias,
Que entoem pela voz das creaturas:
Santo! Santo! tres vezes nas alturas,
Ao Deus da creacão!

      Pois eu que sou o espirito das cousas,
O verbo inspirador, a alma, a vida;
Sinto em meu peito a gratidão devida
Á tua mão que attrae
Em giro eterno os mundos do Universo;
E eu vendo orar ao Sol a flôr n’o matto,
Não hei de só ficar injusto e ingrato
Para comtigo, oh Pae!

      Seja pois o meu canto a voz do interprete,
Que moldando nas formas da palavra
A vida universal que em tudo lavra
Co’o sopro animador:
Eu possa vêr a Terra envolta em canticos,
Sobre as azas de luz da alma humana,
Remontar-se ás origens d’onde emana,
As tuas mãos, Senhor!

Quinta da Beselga

1871.

IX

SURSUM CORDA!

      Oh Sol, alma do mundo! esplendido portento
D’um mar feito da luz! vulcão, cuja fornalha,
Por entre um fogo eterno, expande o movimento
Da machina febril do mundo que trabalha!

      E tu, Astro do amor, que, em noite silenciosa,
Qual perola engastada em fulgidos brilhantes,
Derramas tua luz serena e voluptuosa
Nos seios virginaes das timidas amantes:

                           C’o os vossos esplendores,
Pela amplidão dos ceus,
Cantae altos louvores
Ao espirito de Deus!

      E tu, mar rugidor! austero cenobita,
Que em vastas solidões gemendo os teus pesares,
Levantas o teu canto á abbobada infinita,
Juntando a vóz piedosa aos céllicos cantares!

      E vós, filhas do ermo, alegres, crystalinas
Fontes que derivaes das fendas dos rochedos,
Ás flôres murmurando, em musicas divinas,
De amor e de ventura uns intimos segredos:

                           Mudae as harmonias
Da vossa eterna vóz
Em ternas homilias
Ao pae de todos nós!

      Arvores que fluctuaes nos cimos das montanhas,
Altivas demandando o azul do firmamento;
Que encheis as solidões de musicas estranhas,
Se passa sobre vós o espirito do vento!

      Lyrios, que abrindo o seio ao osculo amoroso
Da luz que envia o sol da abbobada azulada,
Mandaes-lhe o vosso olor no ether luminoso,
Como o habito subtil d’uma alma enamorada:

                           A musica e o perfume
Que desprendeis, votae
A quem em si resume
O mundo inteiro e é Pae!

      Oh rabidos leões! lá quando em vossas festas,
Altivos como os reis, indomitos senhores,
Debaixo do docel das mûrmuras florestas,
Rugis como um trovão os fervidos amores!

      E vós, corças gentis e timidos cordeiros,
Que em vossos corações e almas bem formadas,
Ao sangue preferis a lympha dos ribeiros,
E á carne em podridão as hervas perfumadas:

                           Louvae a quem fizera,
Co’o mesmo engenho e amor,
As fauces d’uma fera,
E o calice d’uma flôr!

      Arvores, flôres, mar, e estrellas, e animaes,
E todos vós que entraes no giro da existência;
Que haveis nas regiões das cousas immortaes,
Por synthese suprema, a _luz da consciencia_:

      Unindo-vos a mim, como eu á Humanidade,
Louvemos todos nós n’uma oração sentida,
Em côro festival que attinja a immensidade,
O eterno Sol dos Soes, o sabio Author da Vida!

                           Cantemos, creaturas!
Pela amplidão dos ceus,
Hossana nas alturas
Ao espirito de Deus!

Carvalhaes, 1886.

X

AOS CATHOLICOS

      Todos vós que sois sinceros crentes,
Que oraes a Deus no intimo do peito,
Oh mysticos christãos;
Embora tenha crenças differentes
D’aquellas que seguis, eu vos respeito,
E julgo como irmãos!

      Eu amo a Deus; depois a Humanidade;
Depois os bons, e d’estes o primeiro,
É Christo, o Redemptor!
Não sendo egual em tudo á Divindade,
É, como justo e homem verdadeiro,
Meu mestre e meu mentor!

      Embora por fanatico me tomem
Impios e atheus, se os ha, eu lhes confesso,
Que o Martyr da Paixão
Parece-me tão grande como homem,
Que até sinto vertigens quando messo
Seu terno coração!…

      Oh meu Jesus! nas luctas pela vida,
Por onde tanto naufrago fallece
No meio da viagem:
Minha alma soffredora e dolorida,
Cahiria tambem se não tivesse
A tua doce imagem!…

      Eu que creio que o facho da sciencia
Nos ha de revellar, ao fim de tudo,
Que em nós se concilia
Rasão e Fé, Justiça e Consciencia:
Ah quero-te Jesus! por meu escudo,
Por meu amparo e guia!

Na Sé de Lisboa

na quarta feira de trevas

1888.

XI

FÉ E RASÃO

A CRUZ E O PÁRA RAIOS

      Da velha cathedral, esbella e rendilhada,
Votada a ser mansão do Deus, author do mundo,
Na flecha a mais gentil, campeia abençoada
A cruz do Redemptor, da Gallilêa o oriundo!

      Nos impetos da fé, cortantes como a espada,
O ungido do Senhor, d’olhar cavo e iracundo,
Aponta á multidão, humilde e ajoelhada,
Por seu supremo amparo a cruz, no azul profundo!

      Em nome d’ella exalça a fé porque a aviventa,
E diz mal da rasão que tenta, em vãos ensaios,
Dos ceus arrebatar a luz, de que é sedenta!

      Mas do alto onde ella está, que causa até desmaios,
Temendo que a derrube o fogo da tormenta:
Em nome da Rasão lhe pôe um pára raios!…

Outubro de 1888.

XII

AMOR E PROVIDENCIA

      Em quanto eu, alta noite, velo e lido,
Por vós mantendo innumeros cuidados,
Dormis, caros filhinhos, socegados
Em torno a mim o sonho appetecido!

      Dormis?! sonhaes de certo… e eu pae envido
Meus esforços por vêr realisados
Vossos sonhos gentis e perfumados:
Ampara-vos um peito estremecido.

      Outro Alguem faz por nós o que eu vos faço:
Com suprema bondade e sapiencia,
Rege os mundos que rolam pelo espaço!

      Esse Alguem é o Amor por excellencia,
O formidavel e invisivel braço,
E o olhar que nunca dorme==_a Providencia_==!

Lisboa, 1885.

XIII

Á GUERRA!

O QUE EU SINTO…

      Se vejo com pavor as luctas carniceiras
Que empenham as nações, chamadas as primeiras,
Nos campos da batalha,
Ah! quando a sós comigo e o Eterno me concentro,
Ouço não sei que voz a mim bradar cá dentro:
==É Deus que ali trabalha==!

      Por mais que ousado vôo aos ceus a aguia eleve,
Nos ceus ha um limite além do qual em breve
Fallece a aza e taes
Como as aguias os reis!… Subiram, mas solemne.
O dia ha de chegar em que Deus os condemne
E brade-lhes==Não mais==!

      No chão não ha raiz que diga á Terra==estanca
A seiva que me dás==! Nem aguia ou pomba branca
Que engeite o vôo alado!…
Não ha um lavrador que entaipe em cal e pedra
A fonte de chrystal, de cujas aguas medra
A arvore, a flor, o prado!…

      E onde ha no mundo um povo a outro povo extranho?!…
Ou odio figadal, intrinseco, tamanho
Que a todos nos divida?!
Se a Terra, o mar profundo e o proprio sol são pouco
Por darem vida a um lyrio: haverá hoje um louco
D’um Cezar que decida,

      D’encontro ás sabias leis por Deus dadas ao mundo,
Que um homem, cujo peito infinito e profundo
Abrange a Terra e os Ceus,
Guerreie o proprio irmão que é d’elle a propria essencia,
A luz, o ar, a vida, a força, a providencia,
Que deste-lhe, meu Deus?!

      Oh não!… Tu mandarás o dia em que a Justiça
Obrigue-os a expiar com fronte submissa
Dos crimes o estendal
Que encheu de sangue e horror as paginas da Historia,
Servindo de lição, ficando por memoria,
Em prol do teu Ideal!…

      E o mundo hade voltar á fonte d’onde veio,
E ser todo elle amor, justiça e paz!… Já leio
Signaes _de nova Luz_!…
As crenças do Passado estando já em terra,
Vem prestes a surgir a nova Lei que encerra
Os sonhos de Jesus!…

      E eu beijo e adoro a mão que impelle e rege o mundo,
Que deu a flor ao campo; os sóes ao firmamento,
E o espirito divino
Aos nossos corações! Que a toda a creatura,
Á flor que desabrocha, ao astro que fulgura,
A todos deu destino!

      Por isso eu n’este mar, sobre este chão d’abrolhos,
Por onde cae amaro o pranto dos meus olhos,
De fito no Senhor,
De fito no Ideal, minha alma não se inquieta:
Confia e sobe a Deus, é como a borboleta
Que vae poisar na flor!

Bussaco, 1870.

XIV

Á PAZ DOS POVOS

HOMO, EX HOMINIS LUPO, HOMINIS COOPERATOR

      De lobo te foi dado outrora o nome,
Lobo que a propria especie devastava
Cruento e fero, qual não viras nunca
Leões, pantheras, tigres ou chacaes!…

                  E a fera, quando a fome
A incita, é quando crava
O dente e a garra adunca
Nos miseros mortaes.

      Da massa do teu cerebro colhendo
A luz consciente e pura das ideas,
Concebes mil engenhos homicidas,
Inventos d’infernal destruição!

                  Com elles, monstro horrendo!
Ha seculos semeias,
Em guerras fratercidas,
A morte e a assolação!…

      Mas como as forças cosmicas da Terra
Cessaram suas luctas de gigantes,
Trazendo á luz do Sol, d’amôr sedenta,
Dois mundos revestidos d’esplendores,

                  O mineral que encerra
Os fulgidos brilhantes;
E o vegetal que ostenta
O olhar gentil das flores:

      Assim as mil paixões que a tanto custo
Contem teu peito e o rubro sangue agita,
Por ultimo hão de ter a vida calma
Que impõe por norma a tudo a Providencia;

                  E o Bello, o Bom e o Justo,
Na sua acção bemdicta,
Levar-te aos seios d’alma
A paz da consciencia!

      Do sol os raios que dão vida ao globo;
Da vida a força multipla que actua
Em prol de cada qual, para que tomem
Quinhão no Bem, que é dado como a luz:

                  Reclamam nos que o Lobo,
Da historia se destrua,
E dê lugar ao homem
Sonhado por Jesus!

      Se o cahos do teu peito foi sequencia
Do cahos primitivo da natura:
Terá tambem destino egual ao d’este;
Dará um quarto mundo, o da Verdade!…

                  O da alma, cuja essencia
Incorruptivel, pura,
Procria a luz celeste
Do Bem, na Humanidade!

      Ver-te-has então qual Semideus Consciente!
O sangue que pecorre em tuas veias,
Origem dando a fulgidas doutrinas,
Ás nitidas noções das coisas bellas:

                  Tua alma um resplendente
Santuario, onde as ideias
Serão luzes divinas,
Mais puras que as estrellas!

      Antithese da Vida do Passado,
Compete-te integrar na Terra os Povos;
E, chave do vastissimo problema
Da Vida humana: honrando o Redemptor,

                  Nos ceus tem Deus traçado
Aos teus destinos novos,
Por synthese suprema,
A Paz, o Bem, o Amor!

25 d’abril de 1898.

XV

AO HOMEM

      Segundo as tradicções que vão sumir-se
Na noite secular das priscas eras:
Rugiram contra ti, Homem, as feras,
E as coleras do mar;
Dos ceus revoltos os trovões e os raios;
Qual reprobo vivias no universo
Inerme, nu e só, na sombra immerso,
Sem Deus, sem luz, sem lar!…

      Apoz infindos seculos de lucta
Co’as forças implacaveis da materia,
Soffrendo, em toda a escala da miseria,
O frio, a fome, a dôr:
Venceste, e oppões ás lugubres cavernas,
Á escura habitação dos trogloditas,
Os fulgidos palacios onde habitas,
Conscio do teu valor!…

      Imperios contra ti ergueram despotas,
Quaes moles collossaes architectadas,
Assentes no prestigio das espadas,
Nas mãos d’um Pharaó,
D’um habil Julio Cesar; mas as moles,
Minadas pela acção do povo obscuro,
Cahiram como cae um fragil muro
No chão desfeito em pó!…

      No intuito de livrar teu grande espirito
Dos vinculos do mal e enobrecel-o,
Tomas-te a Jesus Christo por modelo
Das tuas concepções;
D’accordo a espada e a cruz, a lei e o dogma,
De ti fizeram novamente escravo,
Mas tu, inda outra vez, altivo e bravo,
Partiste os teus grilhões!…

      Por ultimo lançando mão das forças
Da Terra tua mãe, das leis da Historia:
Apenas em tres seculos de gloria,
Com mil prodigios teus,
Mudas-te totalmente a face ao mundo,
E propões-te a fazer o mesmo á alma,
Porque esta, resplendente, justa e calma,
Triumphe á luz dos céus!

      Forjou a mão de Deus no sol teus raios!…
D’ahi todo o esplendor, todo o prestigio
Do teu almo poder! o grão prodigio
Das tuas concepções,
Que em marmore e crystal, em prata e ouro,
E em tellas formossissimas, transmittes
De mão em mão, sem conta, e sem limites,
Ás novas gerações!…

      Na terra, erma de Luz, Homem surgiste,
Trazendo no teu rubro sangue a Ideia,
A luz que doma o fogo, o apaga, o atêa,
E o faz descer do céu
Humilde como um cão!… Poder terrivel,
Que Jupiter temeu, quando, iracundo,
Mandou prender, por dar exemplo ao mundo,
Na rocha a Prometteu!…

      D’ahi a mola occulta, a força ingenita,
A causa porque tu, no ardor da guerra,
Revolves sem cessar o céu, a terra,
A alma e o coração,
E fazes e desfazes, sem descanço,
Systemas, religiões, philosophias;
Depões a Deuses, reis e tiranias,
Em nome da Rasão!…

      Por veres quem tu és e quanto vales:
Das proprias obras faze o claro espelho,
E escreve em face dellas o evangelho
Da nova religião,
O authentico, o real, o verdadeiro;
Que em vez do degradado filho d’Eva,
Com ligitimo orgulho a Deus eleva
Tua alma e coração!

      Senhor das energias infinitas
Do mundo, com que Deus teu pae reforça
Teu multiplo poder: expulsa a força
Que os despotas produz;
Levanta novamente altar e templos
Ao Bello, ao Justo, ao Bem, á Sapiencia,
Afim de que na Terra a Consciencia
Impere em plena luz!

      Em vez de Força, Amôr rege hoje o mundo!…
E Amôr, se toma as normas da Justiça,
Fará com que, empenhando-te na liça
D’um ideal melhor:
Floresçam sobre a Terra, em prol de todos,
Honrando a Deus, servindo a Humanidade,
Os sonhos de pureza e de bondade
De Christo, o Redemptor!…

      Terás no espaço os soes por companheiros,
Comtigo permuttando noite e dia,
Na sua eterna e placida harmonia,
Os mil problemas seus!…
D’accordo Deus e a alma, o ceu e a terra:
Verás com resplendor a tua Ideia,
Chamando-a á vida, em tudo onde campeã
O espirito de Deus!

1892.

XVI

Á MULHER

      Senhor da Força, nós, o heroe lendario,
Da Terra o domador, o sabio, o forte,
Dir-se-ia que jurámos ante a morte
Guerra d’irmão a irmão!…
Mais féros do que os tigres, destruimo-nos
A ferro, a fogo, a polvora, a metralha,
Deixando, pelos campos de batalha,
O sangue, a assolação!…

      Mudou agora o Eterno ao mundo a rota
Que ha seculos trazia,… e novos astros
Despontam no horisonte, e em nossos mastros
Mais rutilos tropheus!…
Em vez da guerra truculenta e impia,
Impõe-nos por principio a Paz dos Povos,
Que impavidos demandam mundos novos,
Nova luz, novo Deus!…

      Fechado para sempre o ferreo cyclo
Da guerra universal, obscuro berço
Do velho mundo barbaro, inda immerso
Nas lendas dos heroes:
Compete a Ti, Mulher, filha dilecta
De Deus, c’roar na Terra a grande obra,
Que em fulgido progresso se desdobra,
Á clara luz dos soes!…

      Missão mais nobre á vida humana é dado:
Juntar e repartir de muitos modos,
Por cada um de nós, e em prol de todos,
Do Bem a eterna luz,
Fazendo com que caiam na nossa alma,
Qual chuva em messe loira e movediça,
N’uma missão d’amor e de Justiça,
Os sonhos de Jesus!…

      Em vez da Força, Amor rege hoje o mundo!
E amor, tomando as gallas da Belleza,
As normas de Justiça, a mãe, a deusa
Das novas gerações:
Ao teu celeste influxo, posto á sombra
Da mãe de todos nós, a _Humanidade_,
A paz será na Terra, e na Verdade
Os nossos corações!…

      Belleza e Amor, unindo-se, fizeram
Do teu mimoso ser um relicario,
Onde a mão do divino estatuario
Os sonhos seus guardou!…
D’encantos mil, conjuncto incomparavel!
A Deus já mereceste tal conceito,
Que só do amor divino do teu peito,
A vida confiou!…

      Teu lindo rosto, espelho da sua alma,
Transporta-me a ideaes de tal apreço,
Que em frente d’elle extatico estremeço,
E ponho-me a scismar:
Se entre as ondas de graça e de belleza,
Que lançam sobre mim seus olhos ternos,
Está ou não occulto a bemdizer-nos
De Deus o proprio olhar!…

      Tem jus as niveas formas do teu corpo
Ao flácido velludo, á fina seda,
Primor da industria humana que arremeda
As petalas da flôr!
Rainha! traja mantos d’ouro e purpura,
A doce perl’a, o fulgido brilhante,
E tudo quanto esplendido levante
Na Terra o teu amor!

      Amor se symbolisa n’um menino,
Dos ceus gentil e alado mensageiro,
Trazendo atraz de si, como um cordeiro,
Pacifico leão!
O magico poder que a fera doma,
A força de que se arma esse innocente
És tu mulher, e a fera obediente
O nosso coração!

      Conscia de Ti, das leis da vida, impera!
E aos pés verás as almas subjugadas!
Tem mais poder que o fio das espadas,
Um riso e olhar dos teus!
Que o teu propicio amor, dos ceus oriundo,
Nos doure a vida, a ampare, a dulcifique,
Nos faça com que a alma humana fique
Mais proxima de Deus!

1892.

XVII

AOS FILHOS

      Trazidos pelo Amor, que por instantes,
O veu ergue á Verdade,
Por nós á luz vieram, quaes prestantes
Peões da Humanidade!…

      Amor é quem dos ceus nos abre a porta,
Nos deixa vêr o intuito
De Deus na Terra, e a elle nos transporta
Da amante o olhar fortuito!

      Em nós n’um sonho lindo tendo origem,
Se o sonho a Deus encerra,
As sabias leis da historia humana exigem,
Que o sonho desça á Terra!…

      Dos paes vingasse o amor, que este o faria
Entrar na realidade,
Expondo a divinal sabedoria
Em plena claridade!…

      Com legitimo orgulho o sol dar-lhe-ia
Seus raios sempre novos;
E a Terra os bens innumeros que cria
Em paz, a bem dos Povos!

      Em vez de irmãos maleficos eivados
De odios que o sangue atiça,
Os bons e os maus ver-se-iam congraçados
Em nome de Justiça!

      Em frente das pacificas moradas,
Jasmins, lyrios e rosas!…
E as ruas que pisamos marchetadas
De pedras preciosas!

      Tal o sonho que passa pela mente
D’um pae creando os filhos,
E n’essa fé remove deligente
Milhares d’empecilhos!…

      Mas fal’o em vão, que o mundo, sob um pacto
Cruel co’o odio eterno,
Lhe põe em derredor, injusto e ingrato,
Em vez do ceu, o inferno!…

      Ás vezes chega a ter-se horror ao homem,
Ás suas impias luctas,
Ao termos de entregar o peito joven
D’um filho ás feras brutas!…

      Antithese do Bem em que inda espera,
Pergunta dolorido
Um pae a Deus: se accaso lhe valera
Seu filho ter nascido!…

      Emfim é lei, e a lei, ideal supremo
Bemdicto e sublimado,
Fará com que passemos d’este extremo
Do mal, ao Bem sonhado!…

      De Deus a Idéa amplissima, infinita,
Qual filha ao lar paterno,
Em torno a Deus explendida gravita,
No seu percurso eterno!

      E tal como do cahos pavoroso,
Que a custo eu mal devasso,
Surgio mais tarde o mundo esplendoroso,
Que rola pelo espaço!

      E á eterna luz dos soes no firmamento,
Celeste peregrino,
Caminha sem cessar no seguimento
D’um Ideal Divino:

      Assim o coração febril se arrasta,
Na sua lucta immensa,
Atraz do Bem Supremo, e tanto basta
Por base á minha crença!…

      Buscando o summo Ideal por entre antitheses,
Fazendo e desmanchando:
O espirito concebe as largas syntheses
De Deus, de quando em quando!

      Ao fim de cada qual resurge a Vida,
E muda os moldes velhos
Por outros que se ajustam á medida
Dos novos evangelhos!…

      Sobre isto a historia offerece-nos exemplos!…
Os criticos deparam
Co’os netos desmachando um dia os templos,
Que seus avós sagraram!…

      D’ahi os odios vãos de fanatismo;
Os multiplos revezes,
Que assolam as nações co’o cataclysmo
Das crenças muitas vezes!

      Quem do alto vé, no entanto, a historia humana,
Contempla sorridente
A marcha dos destinos porque emana
D’um Pae ommisciente!

      Passem nos ceus, com rapidez tamanha,
Os astros diamantinos;
Que a terra os segue; a terra os acompanha
Eguaes são seus destinos!…

      Aquillo que ha de vir e que deriva
D’aquillo que hoje somos,
Que em si contém do Eterno a parte viva,
Nos filhos o depomos!…

      Os filhos são da arvore da vida
A flôr dos novos fructos,
A quem de Deus a essencia é transmittida,
Com os seus mil attributos!

      E os paes então o fructo assasonado,
Já proximo da queda;
Com elles cae a parte do Passado
Que é morta, e Deus arreda!

      E quem nas leis divinas confiando,
Á fulgida seara
Do bem se consagrou, não morre quando
Dos vivos se separa!…

      Contente desce em paz á sepultura,
Na crença de que os filhos
Verão mais tarde em plena formosura
Dos sonhos seus os brilhos!

      Na marcha ascencional da humana historia,
Que a mão de Deus conduz,
O filho entrou na Luz que é transitoria,
O pae na eterna Luz!…

      Á farta os vermes seu cadaver róam
Na campa onde se esvae!
Sua alma triumphante e os soes entoam
Hossana a Deus que é Pae!

Abril de 1898.

XVIII

Á HUMANIDADE

      Estrellas que rolaes no espaço ethereo
N’um vertice de luz vertiginoso,
E em numero sem conta e sem repouso,
De Deus cumpris altissimo mysterio!

      E vós flôres gentis, purpureas rosas,
Roxas violetas, candidas boninas,
Que abris, tomando formas peregrinas,
Á luz do Sol as petalas mimosas:

                  Commigo erguendo a vóz
Ao throno da Verdade,
Saudae a Humanidade,
Que é mãe de todos nós!

      Materno amor, que tanto admiro e acato,
Perenne luz vital do Ser Supremo,
Ante cujo esplendor confuso eu tremo,
Se sondo o teu Santissimo mandato!

      Ou sejas tu mulher juncto do berço
Com terno olhar velando o teu filhinho;
Ou tu maviosa rola no teu ninho;
Bemditas no concerto do Universo:

                  Por tão divinos bens,
No intimo do peito,
Votae sentido preito
Ao symbolo das mães!

      Mulheres que prestaes culto a Maria,
Á virgem Mãe de Deus, cheia de graça,
Doçura, vida e esperança onde se enlaça
O vosso coração de noite e dia!

      E vós ingenuas multidões que hei visto
Com ar tristonho, humilde e miserando,
Nos templos de mãos postas adorando
Por vossa padroeira a Mãe de Christo:

                  A Virgem que adoraes,
Tornou-se a precursora
Da mãe que surge agora
Aos olhos dos mortaes!

      A mãe que em vez dos tristes filhos d’Eva,
Levanta aos ceus os filhos redemidos!
Em cantigos transforma os seus gemidos!
No Bem o mal, na doce luz a treva!

      A mãe que os filhos todos encaminha
Ao Summo Bem, que traz no peito occulto;
Erguei-lhe pois altar, prestae-lhe culto;
Tem jus a que brandeis==Salvé Rainha==

                  «Bemdito sê nos ceus!»
«Bemdito sê na Terra!»
«Sacrario onde se encerra»
«O Espirito de Deus!»

      Oh povos que viveis sob a vigilia
Do olhar supremo em toda a redondeza,
Formando pelas leis da natureza
E os vinculos moraes, uma familia:

      Sabei que cada qual, tendo-a comsigo,
Trará como um clarão na consciencia,
Um rutilo fanal, a Providencia
Que o pode redimir na hora do perigo!

                  Interpretes de Lei
Divina, e para exemplo,
Em honra d’ella um templo
Na alma humana erguei!

      Estrellas, flôres, mães, sabios e crentes,
Vós todos que formaes a eterna cahorte
Dos bons, dos que perante a vida e a morte,
De Deus esparsem raios resplendentes:

      Por preito á obra santa e redemptora,
Que põe a Terra e os ceus em harmonia,
Como alto solta alegre a cotovia
A limpida canção á luz d’aurora:

                  Á minha unindo a vóz,
Cantemos creaturas,
Hossana nas alturas
Á Mãe de todos nós!

1897.

XIX

AO NOVO CYCLO HISTORICO

AO TRIUMPHO DO ESPIRITO

      Homem! sob o docel das fulgidas estrellas,
Que espalham pelos ceus de Deus o Ideal jocundo,
Surgiste insciente e nu, por entre mil procellas,
A custo iniciando o teu Poder no mundo!…

      A Terra, que ha de ser mais tarde o teu Imperio,
Theatro e pantheon dos teus tropheus de gloria,
Prendeu-te inerme e escravo, e impoz-se ao teu criterio
Terrivel como um Deus, no escuro humbral da Historia!…

      No fundo do teu Ser, que sabias leis dirigem,
Rompia ainda incerta, envolta em serração,
Tua alma, cuja luz transporta o mundo á origem
Do Bello, Justo e Bom, do Amor e da Rasão!…

      Que seculos sem fim primeiro que desvendes,
Dos vinculos da carne, esse fanal divino!…
Que lugubres visões!… Que espectros!… Que duendes!…
Que espiritos do mal, turvavam teu destino!…

      Que o digam as ficções do extincto fetichismo!…
O numero sem fim dos deuses dos selvagens!…
As tetricas visões da Fé no Judaismo!…
Do inferno dos christãos as lobregas voragens!…

      Mas tudo emfim venceste e hoje sôa a hora
De veres sem pavor a estrada percorrida!…
De creres já em ti, em Deus, na luz d’aurora
Que encerra um velho cyclo, e um novo te abre á Vida!…

      Deus fez d’esse teu peito um campo de batalha
Das luctas no Universo!… E ahi foram mantidas,
Em nome do Ideal que a terra e os ceus trabalha,
Medonhas convulsões e guerras fratricidas!…

      Decerto obedecendo a occulto e grão motivo,
No plano universal da Vida a que és sugeito,
As mil conflagrações do cahos primitivo
Vieram a surgir de novo no teu peito!…

      Dois cyclos Deus traçou, d’uma orbita infinita,
Dos povos do universo ás multiplas colmeias:
Um vota-o as paixões que o rubro sangue agita;
O outro ao resplendor sereno das idéas!…

      Inicio da missão primeira a que és chamado,
Tu vês, em pleno horror, da força o predominio
Nas feras, que, crueis, rugindo em alto brado,
Se votam sem quartel ás luctas de exterminio!…

      Mil raças d’animaes, minados d’odio eterno,
Trucidam-se, correndo o rubro sangue em rios!…
Tem odios figadaes, que lembram os do inferno,
Que foi a projeção de tempos tão sombrios!…

      Em face então do mundo acceso todo em guerra,
Proclamas-te senhor e rei da creação!
E levas sem quartel a morte a toda a Terra,
Á pedra, a pau, a ferro, e a tiro de canhão!…

      Soberbo co’o poder, que d’ambições se nutre,
Gravas-te nos brazões heraldicos da gloria,
Das feras, o leão, o tigre, a aguia, o abutre,
Quaes symbolos fieis da tua acção na Historia!…

      Atraz de mil visões formadas como especulos
Que alcançam do Ideal a luz sempre distante,
Tu fechas hoje em dia, ao fim de largos seculos,
Dos Deuses, reis e heroes o periodo brilhante!

      Os proprios animaes, aquelles que escolheste
Por symbolos fieis do teu poder, é certo
Que estão-se a eliminar tambem: a morte investe
Com elles por fatal e superior decreto!…

      A paz que hoje vaes ter por nova lei suprema,
É a mesma a que attingio o propio cahos por meta;
Nos páramos do azul os soes a teem por lemma
Escripto a fogo eterno aos olhos do poeta!…

      N’um multiplo vae-vem, n’uma completa antithese
Por entre o goso e a dôr, por entre a sombra e a luz,
Chegas-te a conceber do mundo inteiro a synthese
N’um pae celeste e Bom, no Deus que vio Jesus!…

      Deriva desde então do periodo primeiro
O fim que se approxima e o resplendente alvor
Do novo Ideal que traz o fim do captiveiro:
Em vez da Força, a Ideia; e, em vez do Odio, o Amor!

      Teu cerebro pensante é como uma semente
Que está reproduzindo a flôr do Ideal!
Eterno nos traduz por forma resplendente
Do seu divino author a essencia espiritual!…

      Do bello lyrio d’alma as petalas brilhantes
Cambiam sem cessar de côr e de perfume,
E levam do Porvir, aos seculos distantes,
O espirito de Deus que o mundo em si resume!…

      É como o grão subtil que um cedro do Hymalaia
Expôe formoso ao Sol, em todo o seu systhema!…
Em intimo labor co’as leis da Vida, ensaia
A eterna solução do divinal problema!…

      O mesmo estão fazendo as fulgidas estrellas,
Formoso campo em flôr, ideal jardim divino!…
D’ahi as mil visões das coisas as mais bellas
Que exparsem sobre nós seu brilho diamantino!

      O mundo desde os soes da cupula infinita
Ás flores a teus pés, com paternal carinho,
Insuflam n’esse peito ancioso que palpita
Valor para que vás seguro em teu caminho!…

      Tem fé no teu destino; em Deus tem confiança!
Da tua historia escripta as paginas sem conta
Derramam na tua alma a nova luz que avança
D’accordo co’o universo e que hoje em ti desponta!…

      Em vez do legendario heroe das priscas eras,
Das guerras extrahindo a gloria a todo o custo:
Honrando o Creador, e as fulgidas espheras,
Serás, qual semi Deus, sereno, sabio e justo!…

      É este o Ideal que as leis da natureza
Inspiram com sublime e candida alegria!…
Que as normas da Rasão, que as pompas da Belleza,
E as maximas do Amor, reclamam noite e dia!…

      O mesmo ensina o mar que arqueja palpitante,
Da terra enviando a Deus seus canticos d’amôr!…
O mesmo o terno olhar dos olhos d’uma amante;
O augusto erguer do Sol, o calmo abrir da flôr!…

      O cyclo que hoje se abre, embora ainda incerto,
Vem dar um novo rumo á tua antiga historia;
Vem pôr-te em equilibrio, em intimo concerto
Co’a vida universal, de que és a alma e a gloria!

      É esta a nova Fé que em tuba altisonante,
Interprete da Vida, entôa a voz da musa!…
Correi, povos, a ouvir-lhe o seu clamor vibrante!…
O espirito de Deus em sua vóz se accusa!…

Novembro de 1898.

XX

NOVA LUZ! NOVO IDEAL!

      Espirito Supremo, d’onde brota
A luz que eterna os mundos alumia,
E deixa pelo espaço uma harmonia
Echo da tua vóz!
Inspira-me a assistir, sereno e impavido,
Ao funebre ruiz do christianismo,
E d’este inevitavel cataclysmo
Salva-te a ti e a nós!

      A Ti, o forte, o sabio, o justo, o symbolo
De toda a perfeição, a ti importa
Que d’esta fé, tornada letra morta,
Vejamos renascer
Do mundo novo a crença ardente e rutila,
Co’o magico fulgor da nossa Ideia,
O espelho onde melhor se patenteia
No mundo o teu poder!

      Ao teu olhar religiões sem numero,
Com ritos, cultos, cheios de fulgores,
Desambam, como as petalas das flôres
Ao Sol que as reproduz!…
Que um novo Ideal d’amor, de ti nascido,
Trajando d’ouro e purpura o horizonte,
Das sombras de hoje, esplendido desponte,
A dar-nos nova luz!…

      Outra verdade, filha d’estes tempos,
Que venha a nós em nome teu, n’esta hora,
Matar a sêde ardente que devora
Os nossos corações,
Depois que á intensa luz de mil combates,
Travados pela fé contra a Sciencia,
Começa-se a apagar na consciencia
O ideal christão!

      A Ti attraes as almas como as aguias
De monte em monte a prole aos ceus subindo,
Fazendo com que attinja o espaço infindo
Que abarca o seu olhar!…
De Brahma a Budha, de Moysés a Christo,
Se fez essa ascenção prodigiosa,
Ao fim do qual a alma é desejosa
De a novos ceus voar!…

      Ah d’esta vacuidade em que se encontram
Os nossos corações cheios de febre,
Que uma alma nova irrompa e audaz celebre
Suas nupcias d’amor
Co’o mundo que lhe coube por partilha,
Passando a co-existir serenamente,
Harmonica, feliz e resplendente,
Como ante o Sol a flôr!…

      Por nós, que não por ti, que és intangivel
Ás frageis condições da vida humana:
Perante o aspecto triumphal que emana
De toda a creação:
Convem-nos expurgir do fundo d’alma,
Da fonte onde se gera o pensamento,
O cunho de tristeza e desalento,
Que imprime o ideal christão!…

      Ha na verdade em tudo o que é belleza,
E força e vida e amor nas creaturas,
Desde os astros que brilham nas alturas,
Á flôr a nossos pés:
Tanta porta do ceu a abrir-se á alma;
Riqueza tanta e tanto amor occulto
A revellar-te a Ti, que é justo um culto
Erguer-lhes outra vez!

      Digamos a verdade: uma semente,
Que eterna e intacta a arvore resume,
Com troncos, folhas, flôres e o perfume
Que entrega ás virações:
Encerra em si mais luz, lição mais pratica,
Mais digna de por nós ser apprendida
Qual maxima d’amor, e ideal da vida,
Que um livro d’orações!

      Tua alma é presa ao mundo que creaste
E o mundo, cuja orbita infinita
Abrange a Terra, e os Ceus, onde palpita
D’amor teu coração,
Tem jus a que façamos d’elle a Biblia
Eterna, aonde apprenda a Humanidade,
Sedenta de Justiça e de Verdade,
A nova religião!…

      Ah tens a executar teus vastos planos
D’amor, e de Justiça, aurifulgentes,
Fanaticos aos mil, e mil videntes,
E innumeros heroes,
De varia estirpe: o artista, o justo, o sabio,
Buscando interpretar teu pensamento;
E encontram pelo azul do firmamento
No mesmo afan os soes!…

      Que á tua vóz as gerações extinctas
Resurjam e contemplem com surpreza
Esta obra immensa, cheia de belleza,
Que em multiplo labor,
As novas gerações estão fazendo!…
Que em nome da Verdade triumphante,
Unisono na Terra se alevante
Este hymno em teu louvor!

1889.

XXI

APPELLO SUPREMO!

      A minha alma immortal n’este exilio onde existe,
Abrigando no seio a ideaes tão risonhos,
E entre os homens só vendo um sarçal ermo e triste,
Onde outro’ra plantára o jardim dos seus sonhos:

      Teve a sorte cruel d’uma flôr, que enganada
Pelos raios do sol, ainda inverno e entreabrio;
Mas que dias depois, co’o cahir da geada,
E o soprar do nordeste, afinal, succumbio!…

      Assim foi para mim o florir dos amores,
N’essa quadra febril em que o sangue é fecundo,
Quando rompe a manhã, quando abrem as flôres,
Quando o Sol brilhante e o azul é profundo!…

      Nem ha rocha no mar, pelas ondas batida;
Nem ha nuvem no ceu, pelo vento açoutada;
Nem ha rosa n’um val’ pelo sol esquecida,
Que se possa dizer mais do que eu desgraçada!…

      Mas se o mal nos incita, e Deus quer nos transporte
D’um estadio a outro estadio atravez muito custo,
Em demanda do _Bem_, que triumpha da morte:
Deves crêr do Porvir no Ideal santo e augusto!

      E se foste, minha alma, a illudida afinal,
Quando crêste emplumar nesta quadra o teu ninho,…
Pede a Deus que te envie aquella hora fatal
Que abre a porta á Verdade e vae tu teu caminho!…

      Oh Justiça increada! oh meu Deus! oh meu Pae!
Tu que a mim me mostras-te o teu seio, esse abrigo
Da _Bellesa_ e do _Amor_, que me envolve e me attrae:
Dá-me as azas Senhor, com que vá ter comtigo!…

Lisboa, 1869.

XXII

REFUGIO ULTIMO!

      Deixa, Senhor, do mundo em que eu habito
A ti meu ser se evol’!…
Tem jus aos ceus quem mede esse infinito
Que vae de sol a sol!…

      Sonhei na terra, amando-a muito e muito,
Novo Deus, nova lei;
Mas foi, pura illusão, baldado intuito,
Comtigo só me achei!…

      Suppuz em vez do gellido egoismo,
Da guerra surda e atroz
D’interesses, em perpetuo antagonismo,
Que envolve a todos nós:

      Homens, povos, nações, por varios modos
Unidos, dando as mãos:
_Todos por um, valendo um só por todos,
Vivendo como irmãos!…_

      É fé que sigo, é crença que mantenho:
Que em mysterioso nó
Unis-te os homens, com supremo engenho,
Formando uma alma só;

      Em serviço da qual cada individuo,
Com multiplo labor,
Trabalha por lhe dar, no esforço assiduo,
O maximo esplendor!…

      Quão mais estreito o vinculo fôr dado,
Mais luz hade irromper
Do nosso coração, do amor gerado
No ventre da mulher!…

      Tal o sonho que em dias mais felizes
Ao mundo consagrei!…
Como hade aqui lançar fundas raizes:
A ti contente irei!…

      Se um raio de calôr ou luz, prestantes,
A terra a si prendeu:
É vel’os como, em rapidos instantes,
Se evolam para o céu;

      E como, n’um sentido em tudo opposto,
A pedra na amplidão,
Quanto mais alto attinge, com mais gosto
Gravita para o chão!…

      E eu não gravito: eu subo na vertigem
D’um céllico condor
A demandar em ti, na propria origem,
Belleza, luz e amor!

Permitte, pois, do mundo em que eu habito
Meu ser a ti se evol’:
Tem jus aos ceus quem mede esse infinito
Que vae de sol a sol!

Novembro de 1868.